Wednesday, September 20, 2006

Uma manhã cheia de esperança...
(a propósito dos presságios astrais)

Alvorecer de 11 de Agosto de 1999. São 7:45 quando olho para o relógio que inadvertidamente deixo cair no chão, de tal modo ainda estou ensonado. Às apalpadelas tento apanhar, com gestos de mão descoordenados, o tempo que se esquiva debaixo da mesa de cabeceira. Viro-me para o outro lado, irritado, disposto a voltar a dormir mas num instante estou fora da cama bem acordado, concentrando todas as energias no fenómeno que a esta hora deve ocupar milhões de mentes como a minha – hoje é o dia do último eclipse de sol do milénio.
Percorro a casa numa volta rápida. Detenho-me no quarto de Anaoi que tem a porta escancarada e as luzes acesas. Dorme com os óculos postos, sem livro por perto, o que me leva a suspeitar que algo se passou durante a noite.
Lá fora o cão capta-me os movimentos e dá-me os bons dias à porta da cozinha, como é seu hábito – um ressoar intenso que me faz lembrar o som expelido pelas narinas de um cavalo espantado. Não resisto a espreitá-lo por uma das janelas e registar o ar alegre e tranquilo que me são transmitidos pelo focinho e pelo abanar do rabo. Ele também não resiste e empina-se subitamente no parapeito, ao mesmo tempo que me prega uma lambidela descarada. Pela descontracção do animal concluo que naquela magnífica cabeça de rafeiro não há qualquer pressentimento de perigo – tenho ouvido, por aí, que os animais sentem antecipadamente a ocorrência dos fenómenos naturais de maior dimensão.
Abro as portadas da sala que é invadida por jorros de luz. Oiço alguém dizer que o “Clipse” já começou. Imagino que dentro de pouco mais de duas horas será escuro, um entardecer adiantado. Pego num jornal da semana passada e fico satisfeito por não ter conseguido um par de óculos de observação que procurei por tudo quanto era sítio. O eclipse não vai ser total por estas bandas, há notícia de óculos falsificados no mercado, o mais avisado é ver pela televisão que transmite em directo – como se de um jogo de futebol se tratasse e, ainda por cima, com relatos de vários pontos do país.
O CIS ( Canal Informativo Satélite ) abre com o acontecimento astronómico em exclusivo. O “Show Man” apresenta uma mesa quase redonda – ele, “Show Man”, na interface do programa onde mais parece um participante do jogo do toca e foge, um Padre porque os padres opinam sobre tudo e uma Astróloga que não cheguei a perceber em que se baseia para nos vir impingir o começo de uma «nova era» de prosperidade para todos nós, quando o que todas as televisões nos mostram nos telejornais é meio mundo à cacetada com a outra metade.
Desculpem, mandei o eclipse e a mesa quase redonda para “aquela parte” e deixei-me dormir a meditar na passagem do último cometa, acontecimento que foi bem mais divertido, não necessitando sequer de óculos especiais para ser observado.
Manhã adiantada sou retirado do sonho cósmico – viajando na cauda do cometa – pela voz aflita de Anaoi que está indisposta e passou mal a noite com problemas gástricos sem causa aparente. Pergunta-me se não vou ver o eclipse... ...e depois se acredito que o mundo vai acabar hoje?
Olho para a rua ao mesmo tempo que o show man anuncia freneticamente que se atingiu o “pico máximo”. Este eclipse, pelo menos por aqui, é uma desilusão total – lá fora está um dia de sol radioso.
Risonho de mais para que o mundo acabe hoje, sem mais nem menos...
Associo a questão colocada por Anaoi e compreendo de imediato a má disposição nocturna. Finjo não perceber as angústias existenciais noctívagas da pequena, penso abordar o assunto mais para o fim do dia, o que me dá uma margem de persuasão mais convincente. A táctica não resulta. Também para a minha filha o progenitor está na posse do conhecimento universal.
E ela volta à carga, desta vez com pontualidade: –ó pai se o mundo acabar hoje a que horas é que isso vai acontecer? Não esperando um segundo pela minha resposta esclarece-me o motivo da sua preocupação: –a Sara diz que isso vai acontecer quando a Lua passar mesmo em frente ao Sol... ...ela vai cair em cima da Terra. O tom do discurso transmite-me que Anaoi atravessa um estado de ansiedade marcada que é necessário contrariar de imediato.
Pela segunda vez sou ultrapassado a emitir opinião: –na Bíblia vem que é no ano 2000 (dizem os catastrofistas que hoje é o dia do fim do mundo referido na Bíblia)!
Adivinhando-lhe o pensamento, assim que ela iniciou a frase fiquei com a resposta engatilhada na ponta da língua: –estás a ver filha, as coisas não acontecem precisamente como estão escritas... ...a Bíblia é um livro muito rico em afirmações mas muito pobre em explicações... ...até porque ainda não chegámos ao ano 2000.
Sabes, as datas quando se trata de escritos antigos são sempre difíceis de interpretar, quer dizer, de sabermos precisamente o tempo a que se referem... ...porque então o calendário não era igual ao de hoje.
Não deves preocupar-te, a nossa Terra, com mais ou menos eclipse, vai continuar a girar à volta do Sol...
Anaoi voltou a sorrir, como sempre, e anda agora aos pulos no pátio, em grande retoiça com o cão.
Fico a fazer contas – se tudo correr bem, quando o Cometa Halley voltar terei a idade de 114 anos e no próximo eclipse total do Sol que espero ver com uns óculos decentes, na Cornualha ou em Budapeste, estarei com 132.
Bonita idade para assistir a um novo fim do mundo...

AC

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