Thursday, August 02, 2012




















O Bispo Negro

Caro leitor, o título desta crónica certamente o fez pensar em Dom Çoleima, cónego negro que Dom Afonso Henriques repescou à última hora, entre os cónegos da Sé de Coimbra, para fazer dele bispo e substituir a Dom Bernardo, o anterior, que fugira da ira do Príncipe, a propósito do anúncio de uma excomunhão papal. Tendo como opções a aceitação da mitra ou a da espada, Dom Çoleima escolheu, obviamente, a primeira (O Bispo Negro – Alexandre Herculano).
Pois dos fracos não reza a História…, …e aqui a história é outra.

Dom Santuário, homem sóbrio e discreto, como mandava a sua condição de eclesiástico, regressava a casa já noite cerrada, após uma vigília de rotina por outra paróquia, não suspeitando que dois matulões, a mando, lhe faziam uma espera, emboscados pela penumbra daquela noite de  lua nova. E foi quando abriu a cancela do pequeno jardim fronteiro à casa, ao ouvir passos apressados em aproximação, então percebeu que estava a ser vítima de um cobarde e diabólico ataque. Nada que Dom Santuário não tivesse já conjeturado para si, pois uma manobrável moca saída debaixo da capa que o protegia do frio, associada aos seus conhecimentos e prática de artes marciais, puseram em fuga os dois tratantes que, vindos ao que vinham, foram aviados com uma tareia à antiga portuguesa.
Conseguindo arrancar a carapuça ao que deu primeiro o corpo ao manifesto, levando uma bem puxada mocada que lhe abriu a testa a meio, nele reconheceu um lacaio do senhor ministro da guerra, P.  Aviar-Branquinho, que desde há algum tempo dirigia a sua intervenção nos media para atacar a prelatura castrense, descontente que andava com os sermões de Dom Santuário, a quem alcunhara de “bispo vermelho”.
O senhor capelão mor das forças armadas não se deixava conter pela hierarquia a que estava subordinado, aproveitando as homilias ou palestras militares para zurzir num governo…, ou desgoverno…, – acentuava ele – de corruptios e diabinhos negros.
O senhor ministro da guerra ficara com todos os cabelos em pé, e se tem muitos a sua farta cabeleira grisalha, ao ouvir as palavras agressivas…, ofensivas…, subversivas…, conspirativas…, explosivas…, do que era também general major das FA, estando assim sob a alçada do ministério.
Para Roma seguiu uma carta por correio diplomático, entregue em mão na Nunciatura Apostólica por Dom Paulus, MNE, sublinhando que todo o governo estava uno na condenação das diatribes desconchavadas do bispo que o senhor ministro dos NE considerava mais negro que vermelho: bastava apreciar-lhe o perfil…, de tez morenaça, olhinhos penetrantes e nariz arrebitado, para lhe vestir a pele de personagem em vías de ser esturricado no “fogo do inferno”. Dom Paulus manteve a sua pose solene de estadista enquanto dissecava o assunto com o senhor Núncio: “muito apreciaria o governo ouvir uma reprimenda sobre a desnorteada…, para não ser mais duro no verbo…, cabeça mitrada”. Sua eminência, como é usual, mostrou-se de muita compreensão e prometeu resposta rápida na próxima mala diplomática.

O Santo Pai tomara conhecimento nessa manhã dos desacatos linguísticos dirigidos ao governo pelo bispo das FA. E não ficara nada agradado com o conteúdo do correio diplomático. Um qualquer pastor de almas não devia intrometer-se nos desígnios e matérias reservadas à organização política laica, fosse em que terra ou país fosse. “A Deus o que é de Deus e aos homens o que é dos homens”, assim estava gravado nas escrituras sagradas desde sempre. E “desde sempre” tem muito peso porque é matéria de fé… …e matéria de fé é matéria de fé… … não há volta a dar-lhe…
Depois de consultada a comissão para a doutrina e matérias de fé, vulgo comissão inquisitorial de inquérito, o Santo Pai decidiu ouvir telefonicamente o seu bispo desordeiro, dando-lhe o sagrado direito de defesa, muito respeitado na Instituição Universal.
Em casa de Dom Santuário  o trim trim do telefone repetiu-se sonoramente até ser atendido pela zelosa mulher a dias do prelado.

-Estou sim…, está lá…, estou sim…, …é do aroma?!

«Não senhora… …daqui é de Roma… é o Santo Pai… quero falar com o meu filho Santuário». Dona Bertita ficou em pânico ao ouvir a voz esganiçada que estava ao telefone: -Jesus…, …credo…, o pai do D. Santuário já está a fazer tijolo há muitos anos!!!... … e o patrão está no jacusi…

«Pois chama ele por favor… minha filha…», insistiu a voz esganiçada.

-AhAhAh… agora também sou filha?! – a mal humorada Bertita não esteve para mais conversas e deu o recado ao bispo, que adormecera no conforto do jacusi: -Dom Santuário…, está ali um tipo ao telefone que diz que é seu pai… …e meu também… …vá lá que eu não o entendo!

Um Dom Santuário resmungão saiu da casa de banho em roupão turco, indo atender o telefone num pequeno compartimento que existia junto à sala da casa, e servia para o efeito: -tá lá…, tá lá…, ó amigo… podia ter telefonado mais tarde para não me interromper o jacusi!

«Ó meu filho… …é o Santo Pai que está no telefono… …Deus te abençoe… …in nomine Patris et filii et spiritu sancti…» – Dom Santuário reconhece de imediato a voz esganiçada e cai de joelhos, persignando-se ao mesmo tempo que recebia a santa bênção.

-Ó meu Santo Paizinho desculpai o atrevimento pelo modo brusco com que atendi o telefono… é que a Ilda…, a governanta cá da casa…, é estúpida que nem uma porta e não consegue dar um recadinho direito – o bispo mantinha-se de joelhos, batendo com a mão no peito, estava emocionado com a bênção daquele santo telefonema.

«Podes levantar-te meu filho, para falarmos de homem para homem». A voz esganiçada vinha agora com entoação de severidade que alarmou D. Santuário.

-Mas como soube o meu Santo Paizinho que eu estava de joelhos? – perguntou ainda mais alarmado o bispo.

«Ora, ora… meu filius, então já esqueceste que sou o representante de Deus na Terra?! Pois Deus sabe tudo…».

-Isso é verdade…, se o meu Santo Paizinho sabe mesmo tudo… tudo…, esta semana podíamos jogar no euromilhões e dividíamos a meias… … sempre são 189$ milhas dele! Os olhinhos do vigário castrense exprimiam uma espécie de êxtase, enquanto anunciava o numerário.

«Ó meu pobre filius que andas transviado do rebanho do Senhor…, …percebo agora que trocaste o amor a Deus pelo amor ao vil metal. Jesu escorraçou os vendilhões do Templo e tu estás a escorraçar Deus do teu coração!».

-Não…, não meu Santo Paizinho…, tenho apenas um pequeno pé de meia para a velhice…, um seguro de saúde para Tranquilidade minha – respondeu pronto Dom Santuário, logo interiorizando que o Santo Paizinho “sabe tudo e mais alguma coisa”.

«E também recordo meu filius que nos últimos anos não tens contribuído, que fosse com uma moedinha de ouro, para a nossa sagrada Instituição!!!».

Respondeu Dom Santuário, arregalando os penetrantes olhinhos: -é a crise meu Santo Paizinho…, é a crise…

«OhOh…, as crises são um bom momento de reflexão…, …podemos considerá-las uma dádiva do Senhor que nos indica o caminho a seguir».

Dom Santuário, tapando o bucal do telefone, comentou para o lado: -este gajo tem resposta para tudo…, estou lixado…, não consigo dar-lhe a volta…, é pior que o Aviar-Branquinho e o Dom Paulus juntos.

E nem a propósito…

«Meu filius…, recebi na Santa Instituição Universal… a Dom Paulus…, com queixas relativas ao teu mau comportamento…,  te serves da mitra para ofender o governo do país».

-AhAh meu Santo Paizinho…, desconfiai desses tipos, que são falsos cristãos…, …intriguistas… …manipuladores políticos…, esses conheço eu de ginjeira…, …querem roubar aos pobres para dar aos ricos!!!

«Filius…, são eles que te pagam o pré…, …tem tento na língua…, porque se ficas sem emprego, a Santa Instituição, falida como está, não te pode dar mesada».

-Homessa…, peço perdão meu Santo Paizinho…, por essa é que eu não estava à espera…, a Instituição Universal falida?! Quer dizer que a minha reformazinha, com complementos, diuturnidades e serviços de desgaste rápido… … népias!!! E o que fizeram a tanta massa… …macarrão… …massa de cotovelo… …enfim, toda a gente sabe que havia massa por todos os lados, pois a recolha tem sido global…, …até  foi a InstituiçãoUniversal que inventou a globalização… …ou não foi?!
Dom Santuário teve uma brutal descarga de adrenalina, mas ainda ouviu o Santo Pai responder: «é a crise… ….é a crise  meu filius…,  tu o dizes!.. ».

Entretanto, depois de findo o telefonema vindo de longe, e que deixou Dom Santuário, se não perplexo, pelo menos pensativo, tocou a rebate a sineta da casa, anunciando a chegada do senhor ministro da guerra em pessoa, Aviar-Branquinho.
Dom Santuário ainda estava nos preparativos da sua higiene matinal, quando lhe foi anunciado o visitante, ora que estava introduzido na sala das visitas pela governanta Bertita. O prelado enfatizou do outro lado da porta das águas-limpas: - Bertita…, ofereça-lhe um copo da Casa do Mouro…, pode ser que lhe faça mal aos intestinos (tal era o apreço que Dom Santuário tinha pelo senhor ministro).
E assim, Bertita, que já se tinha arriado a preceito com a farda domingueira, foi com a bandeja de prata da casa oferecer um copo do tal vinho da Casa do Mouro ao senhor ministro da guerra. Este, só de ver o líquido purpúreo ficou mal disposto e recusou a oferta, cogitando para si: «o padreca quer ver se caio na esparrela…, isto é…, envenenado».
Depois de uma seca de espera no sofá, já dormitando o senhor ministro da guerra, Dom Santuário entra “triunfante” na sala.
-Como está o meu caríssimo amigo do coração, senhor ministro! E logo sua excelência, que saltara do sofá com o susto, foi abençoado pelo bispo, que era matreiro como a raposa e rápido de pensamento como o raio. E continuou, sem dar tréguas: -a que devo a honra desta visita matinal de vossa senhoria?
O ministro ia abrir a boca mas o prelado não lhe deu, novamente, hipótese: -nada pior que os media para criar factos que não existem e arranjar a confusão quando tudo é límpido e transparente. Refiro-me a umas declarações minhas, em entrevista televisiva, que muito incomodaram o senhor ministro, e o governo em geral, como me foi dada nota, posteriormente, pelo nosso Santo Pai.
Finalmente Aviar-Branquinho conseguiu abrir a boca: «Sim…Sim… estamos todos muito incomodados e consternados pela incompreensão de um membro do alto clero da Instituição Universal e também das nossas FA… senhor bispo em general major…, … as suas declarações, que me escuso repetir, puseram o governo em pé  de guerra».
D. Santuário não deixou escapar a ocasião para espetar mais uma farpa no senhor ministro: -ora aí tem uma excelente ocasião para testar os novos submarinos Tripente e Arcona… … vossa excelência aproveite o “pé de guerra” e veja o lado positivo das coisas…
O ministro salivava abundantemente e deitava gafanhotos, como se fossem projeteis contra o bispo das FA, que, em defesa, já se tinha afastado convenientemente.
Por alguma razão os prelados estudam com empenho os clássicos, o latim, a dialética e a filosofia. Dom Santuário sabe que, nestes casos, a arma mortífera é interromper o adversário…, não o deixar prosseguir o raciocínio lógico.
-Quer dizer que o senhor ministro não percebeu que as minhas palavras foram interpretadas fora do contexto…, e quando se interpretam palavras fora do contexto gera-se uma confusão dos demónios!
O ministro estava embasbacado e Dom Santuário ofereceu mais um copo do tal vinho da Casa do Mouro, com brinde: -à saúde do ministério…, do governo em geral…, e da prelatura castrense em particular.
O certo é que este copo o senhor ministro bebeu de um só gole, mostrando um facies de amargura que deixou Dom Santuário preocupado. E saiu porta fora.
Da janela fronteira à rua, o bispo pôde observar o senhor ministro da guerra, junto ao seu automóvel, a meter os dedos na boca para vomitar.
Com um sorriso de orelha a orelha, Dom Santuário comentou a cena: -governo de corruptios, diabinhos negros… …e enjoados… ou antes, enjoativos!


AC (a continuar conforme as cenas dos próximos capítulos)

 

Sunday, July 22, 2012

















No Pico da Fama – Col du Tourmalet



Como o mundo é pequeno! Até na volta à França o Dr. Elvas tem admiradores que aproveitam o calvário dos ciclistas para lhe manifestarem o seu apreço e apoio (ao Dr. Elvas). Também eu não pude deixar de lhe  dedicar estas  breves linhas, emocionado que sou com a diáspora lusa em terras gaulesas.

Foi um alvoroço aquela manhã no palácio de S. Bendito, com a chamada telefónica vinda do palácio de Bérrém, traduzida pelo assessor de línguas estrangeiras ou estrangeiradas, já que em S. Bendito está em uso o português do acordo Luso Brasileiro e em Bérrém o costume ainda é o português sem acordo ou seja, como dizem alguns gozões da nossa praça literária, macarrónico.
De Bérrém estava em linha o assessor do Presidente Cavaquinho, Nuno Libertino, que insistia em falar com sua excelência o Senhor PM Dr. Passos Perdido, que não se encontrava na residência oficial, repetia o assessor para os assuntos com a Presidência.
-«Nada para fazer???... …bela vida a vossa!!!... … e a economia?..., bem!... com o trapalhão do “Ovo Estrelado” é realmente difícil desemperrá-la…; e as finanças…, daí são só más notícias dadas em onda lenta pelo Vigor Gasparão…».
-Ó Nuno…, o patrão anda por  aí a cumprir agenda…, já que não há mais nada para fazer…
-Mas ó Libertino…,  tens que concordar que o vosso patrão tem arranjado boas trapalhadas… …como assim?... …olha, a da reforma miserável que recebe… parece não dar para pagar os vestidos da dona 1ª dama na Fátima Flopes… e a intriga das escutas aí em Bérrém, um desajustado fait divers com alcance eleitoralista… e mais umas quantas mesquinhices só de manga de alpaca…
Assim ia animada a conversa entre os dois assessores quando foi anunciada a chegada, ao palácio de S. Bendito, do senhor ministro de Estado nº 1 Dr. Gabriel Elvas.
-Bem…, não disse Bérrém…, disse bem!..., chegou o nosso 2º patrão que entrou pela porta do padeiro para não ser apanhado pelos jornalistas…, …emagreceu dez quilos nestes poucos dias e anda num frenesim que não sabemos quando vai ter fim.  Queres falar com ele? – perguntou o assessor de S. Bendito, com uma vozinha que levava o timbre de puro gozo.
«Nãooooo…, nãoooooo…, esse é o nosso grande problema… todas as conversas aqui vão bater no mesmo… é dia e noite: o curriculum vitae do Dr. Elvas…, o curso do Dr. Elvas…, a maldita Lusófila que não devia existir…, …pois com as “outras duas” foi o que foi, nada disto aconteceria…, uma vergonha…, uma vergonha…, grita a professora Cavaquinho pelos corredores do palácio…, já não suporto mais ouvi-la».
-Sendo assim…, Nuno… como queres que faça… ou não faça?...  …ele deve vir almoçar, pois sem os subsídios, e com o controle dos cartões mais apertado, vem sempre.
«OK… liga-me logo que dê à costa…, …podes prepará-lo sobre o assunto: o Presidente quer uma reunião urgentíssima ainda hoje… sem agenda» – Libertino abriu assim a janela indiscreta do suspense.
F…, …trif… só faltava mais esta para nos encanzinar a tarde…, …desabafou em voz alta o assessor oficial para os assuntos com a Presidência, ao mesmo tempo que entrava no gabinete o senhor ministro de Estado nº 1.
«Mais algum sacana dos jornais a fazer perguntas sobre o meu currículo?... olhe que vocês têm ordens para não abrir mais o bico… e o Passos ainda não chegou para o almoço?...». 
Foi com agrado que o assessor viu o senhor ministro de Estado nº 1 dar meia volta e sair, batendo estrondosamente com a porta. O assessor adivinhou que o senhor ministro de Estado nº 1 estava à beira de um ataque de nervos…, quem não estaria…, isto é…, quem não adivinharia!?
Às 13 horas em ponto o senhor PM chegou a S. Bendito, cumprindo ao segundo cronometrado os compromissos da sua preenchida agenda: almoço frugal com o seu ministro de Estado nº 1, para avaliar os danos causados na esquadra do governo pelo submarino da Lusófila. “Esta perigosa situação é preciso encará-la de frente, admitindo que o pilar central da condução política de S. Bendito, o seu super-ministro, foi abalroado!”
Estava a ser servida a sopa quando o assessor oficial para os assuntos com a Presidência pediu licença para entrar e anunciou a sua excelência o PM o contacto feito pela Presidência, a convocá-lo para uma reunião urgente sem agenda, às 16 horas da tarde. O senhor PM e o seu ministro de Estado nº 1 perderam o apetite e ficaram a olhar um para o outro, com a sopa no prato e sem terem nada para dizer .
Felizmente o ambiente foi desanuviado por uma canção, vinda dos lados dos jardins do palácio, entoada por grupo de crianças que ali viera em visita de estudo: indo eu, indo eu, a caminho de Viseu…, ai Jesus que lá vou eu.
O chefe do governo levantou-se da mesa e, com ar decidido, declarou ao seu ministro de Estado nº 1: –vou andando… a caminho de Viseu…, isto é..., a caminho de Bérrém… *bzzbzzbzz*!
O Presidente que às 16 horas batidas aguardava o PM, começou a mostrar sinais de impaciência, como sejam secura de boca, humidificação das “fontes” e um tique de deglutição em seco, constante, pelo já prolongado atraso, que não era habitual. Para se descontrair decidiu desentorpecer as pernas andando um pouco pelo corredor do palácio por onde devia passar o PM. Ouviu vozes e depois no fundo oposto eis que surge a dona 1ª dama que em andamento agitado e suspirado exclamava: “que vergonha… que vergonha… que vergonha!” Mas logo desapareceu por uma porta corta fogo quando o seu marido Presidente a advertiu: “ó mulherzinha…, deixe-me trabalhar…, deixe-me trabalhar”. «Hoje andam todos com os nervos em franja», desabafou para si o Presidente, já farto de esperar pelo atrasado PM.
Lá de fora chega-lhe o pinóni…, pinóni de sirenes e uma chiadeira de pneus a rapar a calçada do pátio do palácio.
“Ei-lo que chega”, pensou em voz alta o Presidente, ao mesmo tempo que instintivamente olhou para o relógio. «17:15!!!, exclamou irritado, uma hora e um quarto de atraso… parece impossível… eu, no tempo do Maurio, vinha sempre com tempo por minha conta. O comilão é que fazia grandes lancheradas… e eu tinha que estar à seca enquanto sua excelência enchia o bandulho». Com esta divagação por outros tempos, entrou na sala habitual de entrevistas com o PM, onde este já se encontrava hirto e mais pálido do que um defunto com doze horas de morto.
«O trânsito infernal…, como de costume…» – disse o Presidente, passando a mensagem de que não iria criticar o atraso intolerável do PM, que se desloca à Presidência a pedido desta.
-Senhor Presidente…, saiba que tive de me deslocar, in extremis, ao Hospital Júlio de Matos, para onde o meu ministro de Estado nº1 foi levado, acometido por um perigoso ataque de pânico.
«Ó diabo…, isto está a ficar feio…» - balbuciou o Presidente para o seu lado direito, onde se encontrava o assessor Nuno Libertino.
« O senhor PM não me levará a mal… …mas no meu estado de 1ª Magistratura da Nação, tenho que lhe perguntar se acha bem manter no governo um colecionador de trapalhadas como o seu ministro de Estado nº 1? Eu sei que é uma situação difícil e delicada… … mas mais delicada e difícil é a situação do país que o governo tem que levar a bom porto…» – pressentia-se que o Dr. Passos Perdido não tinha sequer um trunfo na manga, um ás de espadas que pudesse bater em cima da mesa para resolver a jogada, enfim estava mesmo perdido naquele que agora lhe parecia um grande e inóspito palácio…, …habitado por vampiros! E o Presidente continuou a falar, como se fosse só para ele, com uma frieza draculiana.
«…ora com um “braço direito” a esta hora deitado numa enxerga do Júlio de Matos, metido numa camisa de forças por causa de um ataque de pânico…, deixe-me que lhe diga senhor PM, na Feira da Ladra vai encontrar melhor estampa…» – e o calvário do senhor PM continuou, em direcção ao seu “gólgota”…, no Col du Tourmalet
«…como sabe não perco uma etapa da volta à França, ou não fosse eu um amante da modalidade…; …e hoje reservei um tempinho para ver a subida ao Col du Tourmalet, aqui com o Nuno Libertino, um ás do pedal em BTT…, …mas qual não foi o nosso espanto…, direi melhor…, o nosso choque, quando aparece no ecrã da televisão um português, certamente, com um grande cartaz amarelo que tinha escrito a letras garrafais: “vai estudar Elvas”!».
Percebendo  que o PM também estava  à beira de um colapso…, e para quebrar o ambiente tenso que toldara o éter da sala, o Presidente aconselhou o PM do modo seguinte: «mande esse tal… … seu ministro de Estado nº 1 para Angola… vai ver que ele se vai dar bem com os Dos Santos…, …mais depressa do que pensa arranjará outro “seu ministro de Estado nº 1”».

E há quem diga que o Presidente não tem sentido de humor!



AC

Sunday, July 15, 2012


A Secretíssima Trindade – ministro, espião e muito mais



Um caso de jornalismo intempestivo pôs um ministro e um espião em rota de colisão… isto é… confusão. E como quem conta um conto acrescenta um ponto, o caso gastou rios de tinta e resmas de papel nos jornais do princípio do século. Principalmente à época, um tal CM (Correio Mór) fez as delícias da populaça com apetências mórbidas para histórias vampirêscas, casos de adultério (vulgo cornos), corrupção e intriga política, condimentadas estas, regra geral, por clichés das anteriores.
Caro leitor, nada do reproduzido é actual (ou atual)! Apenas o espírito humano permanece imutavelmente depravadíssimo.



Capítulo I: O Almocinho



-Sim…, estou!

«Boa tarde Dr. Elvas…, é o George.».

-George quê pá?

«George da Ongoering Dr.».

-Ah!... como está o meu amigo…, isto não é perigoso pá… estar a contactar-me por telemóvel pá… eles até o Cavaquinho Silverado escutam em Bérrém…

«Dr…, deixe isso por minha conta…, está tudo sob controle».

-Sendo assim…, em que posso ser útil ao meu amigo pá?

«O patrão Bruno Mausconselhos encarregou-me de lhe fazer um convite para um almocinho de trabalho… nós aqui na Ongoering trabalhamos também durante a hora de almoço…, brqrtrfrvr…»

-Estamos sempre abertos a esse tipo de iniciativas: um almoço de trabalho…, contém comigo…, trabalho é comigo… é do que este país mais precisa… gente trabalhadora… (como nós…, pensou em voz alta o Dr. Elvas).

George Cara de Pau desligou o telemóvel dando aos lábios um trejeito semelhante a um disfarçado sorriso, pois o agente toupeira, ou sobespião, nomes porque também é conhecido no milieu das secretas, nunca sorri.
«Por esta é que o Mausconselhos não está à espera…, vou sentar-lhe na mesa da sala Tojo o chefão-mor do próximo governo do Passos Perdido… (o agente toupeira teve que morder com afinco os lábios para não soltarem uma estridente gargalhada). E foi a cismar num mais que justificado aumento do pré que George Cara de Pau deu três afinados toques na porta do gabinete do chairman da Ongoering… e entrou.
Mausconselhos estava a tratar a secretária do gabinete, Liz Boa, que se posicionara em cima da secretária de “pau santo” do patrão, que não havia meio de se despachar, vindo ainda a assistir, o sobespião, ao arranjo da compostura de ambos.

 -Porra meu irmão…, essa mania que você tem de bater e entrar logo de seguida tira-me do sério…, isto aqui não são os “serviços secretíssimos” onde não há segredos para ninguém, onde cada qual sabe da vida de todos e todos de cada qual!
Babyfaca, outro “heterónimo” do sobespião, fez jus ao apelido de Cara de Pau, e tomou a seguinte nota no seu telemóvel: o patrão “come” a secretária do gabinete que usa cinta de ligas e meia de lycra transparente… e pelos vistos gosta à doggystyle… brqrtrfrvr…; enquanto o diabo esfrega um olho, a nota solta foi arquivada  na secção “manias e depravações do patrão da Ongoering”.

-Já agora gostava de saber porque interrompeste o meu momento de ginástica de pausa, sem te ter chamado…, meu irmão espero que seja secretíssimo segredo de estado…, gritou, fora de si, o Ongoering man.

«Ó boss, adivinha quem vem almoçar?»…, os olhinhos de Mausconselhos rodopiaram nas órbitas ao adivinhar a visita para o repasto…; «esse mesmo meu irmão e patrão do coração… o Dr. Elvas pessoalmente», rematou George Cara de Pau.

-Então quer dizer que temos o Balsepé na mão…, Balsepé na mão?..., isto não me soa bem, rematou Bruno Mausconselhos enquanto desamarrotava as calças da ginástica de pausa.

O almocinho, propriamente dito, bem comido e bem regado, onde se soube a marca da caneta com que Ricardo Aposta escreve os seus perigosos artigos no Expressamente Jornal (Monte Branca), terminou com uma frase lapidar do Dr. Elvas: -meus irmãos vamos ver o que posso fazer pá…, ou desfazer pá!
Mal sabia o Dr. Elvas que, durante o almocinho na sala Tojo, o agente toupeira mandara os seus pupilos do serviço secretíssimo fotografar o seu pópó, matrícula incluída, e decorá-lo nos interiores com dois potentes e invisíveis aparelhos de TV Audio.



Capítulo II: Estou Ministro


-Está lá queriiida…, está lá?...

O Dr. Elvas não consegue ouvir bem a mulher, pois um besouro de fundo corta as palavras.

-Vai  para o meu escritório amor… talvez consigas ouvir melhor… aí costumo ter boa rede – não desconfia o Dr. Elvas que duas potentes e invisíveis atenas audio dão uma ajudinha na rede local.

«Sim querido… agora ouve-se como se estivesses aqui». Dona Elvas esperava ansiosa aquele telefonema do marido… para lhe comunicar que sim…, que sim…, já estás ministra fofinha. O marido tinha toda a legitimidade em acreditar na sabedoria popular, que confirma: mulher de ministro é ministra!

-Estou ministro querida…, amor… ducha…, eheheheheheheh!..., ministro não… superministro pá!!!

«Mas o Passos Perdido manda mais que tu filho!… ele é o nosso PM» - saiu da boca de Dona Elvas um gritinho histriónico directo à bochecha nadegueira do marido.

-E quem manda no Passos Perdido?... quiduchinha…, quem é?… diga lá amor: moi même…, je…

«Ó Krido Kridinho…, tenha cuidado com a conversa… dizem por aí que um tal agente Cara de Pau anda a escutar Portugal inteiro…» Dona Elvas disse o que disse com a voz mais maternal deste mundo.

-E porque julga a minha menina que eu estou a falar em francês?... esse agente Cara de Pau tirou um cursozeco de línguas técnicas nas Novas Oportunidades…, num domingo de manhã!…  Bom…, bom…, mas agora quem manda sou eu…, o Passos Perdido é chefe do governo e o Dr. Elvas é chefe do Passos Perdido… ip ip urra… ip ip urra… áferriá…, áferrié…

«Não venha tarde maridinho…, cá em casa hoje há jantar e ceia reforçados ihihih…» - rematou Dona Elvas ao desligar a bomba que tinha entre mãos.



AC (continua brevemente)


A Secretíssima Trindade – “o segredo é a alma do negócio”



Dizem que Quentin Tarantino veio a Portugal inspirar-se para o seu primeiro filme Kill Bill. A fama do SIED (Serviço Informação E Desinformação) chegara a Hollywood e os agentes da Secretíssima portuguesa poderiam lançar pozinhos de inspiração, quer nas cenas de artes marciais, quer nas técnicas de disfarce e vigilância utilizadas pelo Serviço de espiões mais hermético do globo. O próprio Serviço de Sua Majestade Britânico MI6, sondado sobre o assunto, teria aconselhado Tarantino na aventura portuguesa, já que o chefe da Secretíssima, George Cara de Pau, era conhecido, no mundo do “virar do avesso a vida alheia”,  como “o espião dos espiões”. Verdade, ou não, eis um segredo guardado a sete chaves nos cofres da Informação e Desinformação Lusa.
É velhinho o ditado: o segredo é a alma do negócio.




Capitulo III: Na vanguarda da comunicação – Clippings e SMS



Pelo sim, pelo não, o Dr. Elvas, a caminho da sede do PI (Partido da Irmandade) onde vai ditar ao PM Passos Perdido as boas peças do emergente governo, telefonou ao agente de segurança do seu gabinete (ainda sombra) para que pusesse a limpo o posto de trabalho do tal George Cara de Pau, que lhe inundara, nesse mesmo instante, o telemóvel ministerial com uma catrefada de SMS (Sofisticados Meios Secretíssimos) e Clippings (palavrão usado na  gíria da espionagem…,  sem tradução, mas com o sentido de “o que escorre é o melhor”) com nomes de mercados futuros para os serviços secretíssimos.
O Dr. Elvas recorda-se, como é óbvio, do almocinho de negócios na sede da Ongoering…, e da irritação que lhe assomou ao semblante quando esse Cara de Pau o tratou por tu sem pedir, ao menos, licença. O suor encharcou-lhe o lenço branco com que Dona Elvas enfeitara o bolso superior do casaco do marido, ao reproduzir mentalmente a voz da esposa através do telemóvel: «…um tal agente Cara de Pau anda a espiar Portugal inteiro»!

-Ó Jácomo…, você faça uma revisão aos interiores do meu automóvel…, para não termos surpresas desagradáveis com os da comunicação social, que gostam de meter os olhos e os ouvidos onde não são chamados…, compreendeu(?)

«Sim senhor ministro», respondeu Jácomo assertivamente, lançando um sorriso invisível no espelho retrovisor. Se o senhor ministro o tivesse detectado, talvez ficasse de pés e mãos atrás com o seu motorista particular, pois o simpático e prestável Jácomo é um agente infiltrado dos serviços secretíssimos ao serviço do seu ex chefe George Cara de Pau.
Ao chegar a São Catano o ministro Elvas tinha à sua espera o irmão Marcus Sinfrónio que, com a incumbência de ter uma palavrinha a sós com ele, quase se atirava para baixo do carro de sua excelência. Valeu-lhe a perícia de Jácomo que, mesmo assim, não ganhou para o susto.

- Ó Marcus Sinfrónio…, com tanta notícia falsa e boato a correr por aí, só faltaria mesmo esta de o meu carro o ter atropelado…, ou antes…, de você ter atropelado o meu carro. Por aqui também parece que anda tudo doido. E ainda não fomos tomar posse, quero e mando com o Cavaquinho Silverado!

«Estou nervoso…, muito nervoso…, senhor ministro de Estado…, o estado a que as coisas estão a chegar não augura nada de bom» - via-se que Marcus Sinfrónio estava à beira de um ataque de nervos.

-Homem acalma-te…, tem compostura…, o momento político requer frieza e nervos de aço…, toma lá um comprimidinho aqui dos meus que eu hoje já tomei três – o Dr. Elvas toma Valdispert para todo o tipo de sintomas – mas conta como está o ambiente aqui em São Catano…, já sabidas as gracinhas daquele tal George Cara de Pau… que ninguém conhece…

«O Passos Perdido está passado…, melhor dizendo…, quase a passar-se…, repete que “uma barraca destas servida ao país pelo meu ministro de Estado nº 1…, e logo com os troikanos cá outra vez…, a espiolhar por tudo quanto é sítio…, não me faltava mais nada…, chamem o Elvas!» E logo um coro de vozes se ouviu do interior da São Catano: “ó Elvas…, ó Elvas…”

O Dr. Elvas ainda pensou: -olha…, estão a cantar a canção do Paco em minha homenagem!

«Em sua homenagem o tanas – berrou o Dr. Passos Perdido em cima do nariz dum espantado Dr. Elvas – então você mete-se numa sarilhada destas… quero dizer…, mete-nos a todos neste arroz à valenciana em véspera do Cavaquinho Silverado nos empossar…, ó Elvas…, Elvas… ele não morre de amores por nós…, lembre-se que o Cavaquinho partiu uma das jarras mais valiosas que Bérrém se orgulhava de ostentar…, ainda do tempo da viagem do Vasco da Gama…, assim que lhe comunicaram que nós tínhamos ganho o partido!!!

-Calma Senhor PM…, muita calma…, se houve asneira, calma e cabeça fria não fazem mal a ninguém para colmatar algum dano do lado de cá – o Dr. Elvas transparece tranquilidade, confiança e, acima de tudo, seriedade!

«Então o que propõe o meu ministro de Estado nº 1, como plano de ataque…, melhor dizendo, de defesa» - os níveis de adrenalina do PM, sem dúvida, já estavam quase no seu normal, e ao acentuar a sua posição de superioridade na irmandade com aquele “meu ministro de Estado nº 1”  bem vincado, fez perceber ao Dr. Elvas que o Senhor PM dera uma mijadela, como um cãozinho caniche a marcar território à porta do dono.

O ministro Elvas aproveitou, o “acto biológico” tão digno de um PM, para fazer ouvir a sua voz de comando, lembrando a todos que a melhor defesa é o ataque: -penso que estamos todos com dificuldade em digerir o que não passou de um almocinho inocente com os comandos da Ongoering; deixemos a tempestade amainar para amanhã navegarmos à bolina até Bérrém.

«Mas ó Elvas…, não houve um gajo da Secretíssima que te escarrapachou com umas listagens de irmãos no télélé?». A pergunta do PM, feita com evidente despropósito, foi abafada por inteligente intervenção de um homem do norte:

«ao ataqueeeeee…, bradou Marcus Sinfrónio, perante o olhar atónito de todos os presentes na sala vip da São Catano…, a melhor defesa é o ataque» – rematou firme.



Capítulo IV: Depois da bonança a tempestade – o costume



Quase um ano de paz governativa trazia o Dr. Elvas num reboliço de negócios, visitas e inaugurações pelos cantinhos mais recônditos da Lusitânia.
Foi precisamente num desses passeios festivos e de distribuição de benesses aos correligionários do voto na hora, com vivas ao governo atirados como papelinhos de Carnaval, que surgiram as primeiras nuvens no firmamento do Dr. Elvas. O Assessor para a Vigilância e Combate aos Media (VCM) manchou aquele banho de louvores e hinos ao senhor ministro de Estado nº 1, quando o puxou pela manga do casaco e lhe segredou ao ouvido – o que irritava solenemente sua excelência: «doutor…, peço desculpa…, acabo de receber uma informação secretíssima do nosso irmão George, que também saiu hoje no Expressamente, sobre um tal Nunes Semedão… jornalista…, que se diz vítima de escutas telefónicas pelos SS».
O ministro Elvas, embevecido com os vivas e revivas da exultante multidão, fez o comentário mais apropriado ao momento, mas revelando desconhecer as bátegas de água bem gelada que lhe iam cair em cima: -não conheço nenhum George Nunes Simão! E dito isto sacudiu o assessor, voltando à euforia da festa ao som do fandango ribatejano“sem tens pau agarra-te ao pau…, se não tens agarra-te ao meu…”.
Só mais tarde, de regresso à capital, dormitando no banco traseiro do seu automóvel de Estado, se deu conta do recadinho que o incansável assessor lhe tentara transmitir.
Lá estava na 1ª página do Expressamente Jornal, esse fazedor de inventonas, a sua fotografia ao lado do George Cara de Pau, com o título “Irmãos da sob-loja M”.

“Car^alhoooooo”… !!! ..., berrou o ministro Elvas em português vernáculo  que fez estremecer o interior do pesado automóvel à prova de bala em que se faz transportar sua excelência, palavrão felizmente abolido com o novo acordo linguístico luso- brasileiro.

-Ó assessor…, liga-me a esse gajo para o pôr na ordem…, isto está a passar das marcas… diz-lhe que estou possesso…, tipo demónio à solta…, ou abafa já…. imediatamente… agora… a barraca…, ou mando triturá-lo numa daquelas enfardadeiras de Rio Maior.
George Cara de Pau, que tranquilamente dormia uma sestinha no seu gabinete da Ongoering, acordou sobressaltado e de revólver em punho, como qualquer espião que se presa, reagindo ao trim trim do télélé ( no caso em questão a música do filme do James Bond 007 – live and let die).

«O senhor assessor activou-me todas as defesas…,  há três noites que não prego olho colado ao Balsepé… já tenho algumas vinte páginas de ficheiro com as actividades desse menino.» - o sob-espião tinha grande à vontade com o assessor ministerial…, e o Dr. Elvas fazia-se de parvo para ir tirando vantagem de toda a informação filtrada para o ex chefe agente toupeira pelos corre-legionários ainda activados.

«Ó Cara de Pau…, o senhor ministro está muito…, digamos…, agastado com as notícias do Expressamente sobre um tal jornalista Nunes Semedão… porque, ainda por cima, chaparam com a sua fotografia (do senhor ministro de Estado nº 1) junto com a tua… em amena cavaqueira… parece… » - o assessor engoliu em seco ao vislumbrar a expressão colérica do Dr. Elvas.

Do outro lado da antena o agente toupeira disse um palavrão de grau 6.9 na escala de Berluscona  e foi incisivo: « se o gajo está com agasturas que chupe pastilhas rennie… … e quanto à montagem fotográfica desse pasquim dos sábados… olha ó assessor…, o gajo devia era estar babado por aparecer ao lado de “GEORGE: O ESPIOLHÃO DO SÉCULO”!».

Foi então que o Dr. Elvas percebeu que, uns tempinhos atrás, embarcara num almocinho com um tipo completamente doido…



AC (continua brevemente…, se a pressão atmosférica aliviar…)



A Secretíssima Trindade – fuga para a frente



Uma explicação para o leitor que tem acompanhado esta trapalhada do SIED (Serviço Informação E Desinformação): quando um cidadão mete a mão para recolher informação para qualquer outro cidadão desta Nação poder ajuizar com correção, logo surge o habitual coro de lamentação: ai… ai… ai…, vai  lá vai que estão a bater no pai e na mãe e não se pode dizer mais nada porque os meninos ficam ofendidos. E quando os meninos ficam ofendidos já sabemos que haverá  fuga para a frente.
Pois… choveram mais SMS e Clippings, telefonemas anónimos e emails, nos meus telemóveis e portátil, do que a chuva que caiu durante o Inverno passado.
Assunto recorrente: ofensas pessoais e a familiares, estes nada tendo a ver…, desconhecendo mesmo os conteúdos das minhas crónicas de investigação.
Claro que acabei por levar uns socos à saída do emprego…, enfim… ossos do ofício, felizmente sem nenhum osso partido.
Com mais uma investigação  em pleno desenvolvimento, a questão curricular do Dr. Gabriel Elvas, aqui fica também um registo do que se pode, ou não pode, apurar.



Capítulo V: a escutar Portugal inteiro



Na estória da espiolhagem portuguesa, desde os tempos do zaragateiro  Afonso, certamente o primeiro caso de violência doméstica praticado entre nós, com dimensão histórica – desancou a mãe na batalha de S. Mamede –…, passando pelos exmos frades dominicanos, mestres nos tratos de p. e p.…, e pelo exmo marquês…, esquartejador da nobre nobreza portuguesa…,  e pelo intendente Pina, avesso aos ventos ciclónicos da revolução francesa…, e termino as nomeações soletrando apenas o nome do major Silva, campeão do terror à moderna portuguesa…, nenhuma destas pragmáticas instituições poderia ombrear com a vanguardista SIED (Secretíssima Informação E Desinformação). Não nos referimos à prática de tortura, nesse aspeto podemos dizer que os agentes têm os pés limpos, mas sim ao acompanhamento de todo e qualquer cidadão que, pelos seus compromissos, atos ou negócios, possa vir a pôr em risco a harmonia da Irmandade Secretíssima.  
E não há memória de tamanha inteligência a dirigir a Secretíssima como o sob-espião George Cara de Pau. Conhecedor dos meios de investigação mais modernaços, consolidou uma base de dados pormenorizada sobre as questões tão simples  quanto relevantes sobre o “cadastro” multifacetado dos personagens.
Pode ler-se, a páginas tantas…, no ficheiro de um qualquer arqui-inimigo: …tem seis dedos em cada pé… ou só corta o cabelo se o Benfica for campeão… ou ainda…, come de boca aberta… …e tem caspa que se farta; qualquer um é apontado certeiramente quando é necessária uma identificação eficiente; em outra ficha chega ao pormenor de anotar que o ministro “fulano de tal” tem dez cabeleiras postiças, assim como o número de cabelos que possui cada uma.
Um pasmo de competência e ação habita na casa dos segredos secretíssimos…, foi esta a desinformação que o PM Dr. Passos Perdido transmitiu ao país e em particular aos portugueses…, …que podem dormir de portas abertas e com o computador ligado (hoje a maior parte dos portugueses tem portátil para preencher o IRS).
Este pequeno equívoco do Senhor PM, desconhecendo a mudança de habitat do tal “pasmo de competência”, levará mais tarde a uma embrulhada governamental tão inimaginável quanto foi, depois, o seu pedido de proteção política ao troglodita da ilha da Bananeira.
Com os mais enlevados sonhos patrióticos, divagando ao sabor da rotineira soneca pós prandial na mansão da Ongoering, George simplesmente, como adora chamar-se a si próprio, foi sacudido do seu estado quase hipnótico pelo Hino Nacional, completo de música e letra, toque que introduziu no seu telemóvel particularíssimo.

-Está lá…, está…, é o George pá?

«Como está o meu amigo… Senhor Ministro Dr. Elvas?»

-É pá!... você soube logo que era eu pá!... – George adivinha o estado emocional do Senhor Ministro pela alta frequência com que usa o “pá” no discurso directo… e indirecto também. 

«Claríssimo meu amigo… então para que me serve uma listinha de vozes que me dei ao trabalhinho de guardar em ficheiro sonoro da Secretíssima?».

-ÓÓÓÓ… mas isso é antidemocrático…, quero dizer anticonstitucional!!!  Se a oposição sabe de uma coisa dessas… é uma bomba mais barulhenta que a atómica (úúúúúú).

«Anti quê?... …Senhor Ministro… cabeça fria… cabeça fria…  temos a mão na massa… não vamos dar o ouro ao bandido…, quero dizer…, à oposição…; …mas a que devo a honra desta hiperligação, para além da grande satisfação que me dá sempre ouvi-lo?».

-Ó Senhor Dr. George…, digamos pá que tenho aqui um probleminha entre mãos com uma espécie de jornalista do Púlpito… uma tal Maria José Palmeira pá… que me anda a moer a cachimónia… e o meu amigo sabe que quando nos moem a cachimónia pá não conseguimos pensar… o que este país mais precisa de nós… do governo pá… - George ouvia atentamente o Sr. Ministro Elvas a roer as unhas ao mesmo tempo que debitava doses maciças de ansiedade em cada palavra articulada – ora pois, pensei eu, o George Cara de Pau deve ter dados interessantes pá da folha curricular desta menina pá!

«O Senhor Ministro pensou… e pensou muito bem…, pois sobre qualquer jornalista…, por mais badameco que seja…, os nossos ficheiros são secretíssimos…, isto é, completíssimos… claro está!».

-Mas… deixe-me perguntar-lhe George, por uma questão de curiosidade pura…, essas completíssimas fichas são de quem…, dos Serviços ou da Ongoering?

«Minhas… meu…, minhas após anos a fio de serviço de toupeira!», disse George Cara de Pau denotando alguma irritação, que o  fez não medir, com o rigor exigido pelo seu estatuto, o modo como se dirigiu a sua excelência o Senhor Ministro de Estado nº 1 Dr. Elvas.

-Então sendo suas vamos a isto… pá…

«Vamos a isto… pá…  uma ova! Vamos primeiro analisar uns pendentes…, senhor ministro pá!», atalhou bruscamente George Cara de Pau, o que deixou sua excelência em crescente grau de perplexidade.

-Ó George… o meu amigo acredita pá que agora não estou a perceber nada dessa sua conversa… pá!?

« O senhor ministro abusa do queijo e um dia destes apanha uma camada de brucelose…é o mais certo» - o agente toupeira sorria discretamente para si ao imaginar o frenesim gestual que acometia o Dr. Elvas.

-Bruce… quê?..., perguntou o ministro, pensando que o agente toupeira já estava a passar das marcas.

Mas não estava: George Cara de Pau avivou a memória do Dr. Elvas sobre um telefonema que este fizera para a sua esposa, anunciando-lhe que estava ministro…, …onde veio à baila um despropositado gozo com ele próprio, George Cara de Pau, sobre o seu grau académico, nomeadamente no domínio das línguas técnicas francês e inglês… …o que considerou uma ofensa pessoal e idiota, de quem mais valia meter a língua no saco. A cólera assomara agora ao rosto do sob-espião numa dose qb.
Um pesado silêncio percorreu de um lado para o outro a rede, sendo comutado por um gaguejante Dr. Elvas: -ó…ó…ó… di… di… diabo…, a Duchinha sempre tinha razão… você anda a escutar Portugal inteiro… pá!

«Eu…, senhor ministro?…, … então leia amanhã o Expressamente…, que vai ter saudades do dia em que a minha fotografia, ao lado da sua, lhe provocou agasturas abdominais… … e talvez perceba quem anda a escutar quem ». George cortou propositadamente a chamada, sabendo que, do outro lado da rede, uma palidez de morte tomava conta do rosto de sua excelência o senhor ministro de Estado nº 1.



 Capítulo VI: o sabichão (ficheiro informático recolhido por GCP)


O comentador anónimo do capítulo anterior sugeriu-me que a “questão da licenciatura” fosse abordada. Bronca em pleno desenvolvimento, está visto que o Dr. Elvas não acerta uma…, isto é…, quanto mais quer acertar mais desacerta.
Tendo-me cheirado a esturro, pois é mais que certa a existência de toupeiras no AL Tejo, como na generalidade dos media, não resisti a investigar o assunto que ensombra a secular Instituição Universidade.
É escusado dizer que a  Universidade está inocente!
Os patifes, com grandes esquemas de compadrio e corrupção, proliferam no mundo da política e das negociatas como abelhas à volta do mel. Não tendo tempo para dedicar à leitura dos livros da sabedoria, esgatanham-se para arrancar um título de doutor a qualquer preço. É uma afronta àqueles que dedicam a vida inteira ao estudo.
Lembram-se da máxima do Vasco Santana: “doutores há muitos”…


Desde que nascera, o Dr. Elvas fora colecionando créditos, pensando os papás que num futuro, embora distante, uma, ou mesmo duas licenciaturas nunca seriam demais.
Nesses tempos de analfabetismo nacional, saber ler e escrever era uma ousadia quase tão grande como ter dito, uns tempos antes, que a Terra girava à volta do Sol. E ser doutor era um título mitificado… (mistificado), a tal ponto, que elevava o seu titular quase às portas do Olimpo: se um doutor dissesse sim…, era sim senhor doutor…, se um doutor dissesse não…, era não senhor doutor…, … quem é que se atrevia a contradizer um doutor?!
Com base nestas premissas, foi logo religiosamente guardado, no cofre da casa paterna, o chupetão onde o bom do Elvinhas desenvolvera uma bem treinada musculatura de sucção, até ao início da idade escolar. “Ainda pode vir a fazer-lhe falta” – disse o pai!... (grande é a sabedoria dos mais velhos).
No entanto, os desígnios do destino nem sempre cumprem as aspirações familiares, como muito bem o comprova o case study deste promissor estadista… … o Dr. Gabriel Elvas.
Passar as páginas dos livros…, uma a uma…, depois de bem lidas e interpretadas, era uma sensaboria pior do que ir ver um jogo do Sporting Clube De Portugal, assim pensava o jovem Elvas.
Não foi por falta dos conselhos do pai Elvas, que a toda a hora lhe preenchiam os ouvidos: “meu filho…, agarra-te ao verbo…, olha que um canudo vale mais do que a herança da tia Mariana e do pai… … juntas…, depois hás-de torcer a orelha e não deita pinga”…, assim se expressava quotidianamente a preocupação paterna.
Mas qual quê…, o Elvinhas tinha herdado na têmpera uma aversão ao estudo tão grande como o seu gosto por festas, farras e noitadas a jogar ao sete e meio.
Um dia, já moço espigadote, o bichinho da política perfurou-lhe a epiderme e tomou-lhe conta dos interiores. De nada valeram as palavras sensatas…, umas, outras ameaçadoras, do progenitor para o demover de tal desgraça: “os políticos são todos uns pantomineiros…, anda um homem a criar um filho para isto…, desgraçado… …ainda te deserdo… eu e a tia Mariana”…
A Gabriel Elvas esta cantilena entrava por um ouvido e saía pelo outro!
Aconteceu…, num comício da JSD (Juventude Sem Desemprego), após um discurso inflamado do líder, o Dr. Passos Perdido, o nosso amigo ora se levantou…, ora se sentou…, bateu palmas e berrou “Apoiado” tantas vezes quantas as que foram necessárias para o orador lhe dar a devida atenção…, a ele…, posicionado logo ali, na primeira fila.
Por fim, o Dr. Passos Perdido foi ao seu encontro de braços abertos, cumprimentando: «como está o doutor…, muito obrigado pelo apoio doutor…, contamos consigo doutor…, a tiá Guidá…, onde está a tiá Guidá?…, …tiá dê uma ficha de inscrição ao doutor…, partido e irmandade incluída».
Elvas ainda balbuciou, com aquela ingenuidade digna dos principiantes: -doutor…, olhe que eu não sou doutor pá…, ainda nem acabei o 9º ano…
«Qual quê!!!»…, disse o chefão da JOTA (Jovens Operários e Trabalhadores Associados)…, «aqui somos todos doutores… … doutores em “Ciência Política e Estudos Estrangeirados”…, é o C.V. de todos os jotas … concordas meu?».
A quase ultrapassada timidez do Elvas logo o fez questionar: -e o canudo pá?
Foi a voz esganiçada da tiá Guidá que prontamente esclareceu:
«Meu caro doutor Elvas…, o cartucho…, perdão…, o canudo… … estamos a tratar do assunto na Lusófila!».


Epílogo

E que bem trataram do assunto! Veio aos órgãos de comunicação social o excelentíssimo administrador da Lusófila, botar lição de sapiência para todo e qualquer cidadão desta Nação:
“se ele (quem?) já sabe tudo…, não vem cá fazer nada… e dá-se-lhe o canudo!” (sic.)



AC

















Évora antiga - Portas de Moura


Sunday, May 27, 2012
















O massacre de Houla
 Aconteceu sexta feira 25 de Maio de 2012, num dos países mais antigos do mundo: a Síria.
Entre muitos mortos contam-se trinta e duas crianças, provavelmente de uma escola onde aprendiam a arte inofensiva de ler e de brincar.
Esta fotografia, um testemunho arrepiante, é das "menos" chocantes de uma série delas que vi. Agora discutem quem puxou o gatilho!
Nós nada podemos fazer e amanhã as imagens apagam-se..., como sempre.




Encontro em zona de guerra, ou outra história de David e Golias

Ele é real…, o nossos caminhos cruzaram-se numa viagem que me levou a uma cidade síria, algures no centro do país, chamada AL - Houla. O seu nome é Mohamed, descobri o seu par de olhos expressivos entre outros caminhantes vagueando numa estrada de pó com destino incerto. O rapaz aparenta mais idade devido ao seu corpo franzino, tez escura e à desenvoltura com que se atravessa no caminho suado, tentando impingir a mercadoria por uma moeda.  Certifiquei-me que tem dez anos e o mesmo número de elementos da família à sua responsabilidade para alimentar. O pai foi morto por um míssil lançado de um MIG 29, tal e qual como um elefante esmaga uma formiga, sem um ai, com pedaços de corpo irreconhecíveis que puseram perante o seu par de olhos vivos e tristes, para reconhecer. Hesito em continuar a escrever este relato…, ou paro agora, ignorando a bebida amarga que comprei por uma moeda…, ou vou ter que negociar forças para percorrer o trilho extenuante e sem sentido que me levou a Mohamed.
Em Houla a palavra Alá é dita mais de mil vezes por dia pelas bocas esfomeadas de dignidade dos seus habitantes. Mas Deus partiu há muito para o seu refúgio eterno no paraíso, longe das ruas mal cheirosas com casas esventradas, onde agora jazem famílias por completo.
O que faria Deus se continuasse por estas paragens?..., boa pergunta para colocar a quem fez daquela terra a sua, e à qual eu, como homem e ser pensante que sou, não consigo responder, duvidando mesmo que alguém o consiga fazer.
Ao observar a longa fila de trinta crianças mortas por uma bomba que explodiu em cima da sua sala de aulas fico petrificado, olho o rosto das que ainda o têm, lendo em todos a mesma pergunta para a qual, mais que certo, Deus não tem resposta: porque nos mataram quando estávamos apenas a brincar ao nosso jogo favorito?
Mohamed devia estar na escola… mas não estava… porque anda angariando o sustento para a mãe, duas avós e os sete irmãos mais novos,  por caminhos e ruas sinuosas, onde o cheiro a pólvora e a carne queimada, pelas explosões, se entranha teimosamente pelas gargantas. Ele aprendeu o segredo de um chá, não descobri ainda se transmitido pelo pai ou outro parente mais próximo, que alivia essa penosa secura das gargantas, ainda mais tormentosa depois do corte de todo o tipo de abastecimento à cidade…, e faz dele o seu negócio.
Mohamed pisca-me o olho e acena-me com a chaleira do outro lado da estrada. Aproxima-se do carro atravessando a via e encosta-se à janela que está aberta. Apesar de me saber estrangeiro, fala-me com um sorriso aberto de bom vendedor. Não entendo uma palavra de árabe mas gestualmente traduzo que é um copo de chá por uma moeda. Aceno que sim e ele saca do bolso um copo universal, o que me arrepia… seja o que Deus quiser… por estas bandas é mais certo morrer como alvo de qualquer arma mortífera, do que pelo efeito patológico de uma disenteria. Ao longe anunciam-se sirenes em grande azáfama, pouco antes uma explosão tremenda fora a origem de um sopro que me atordoara os tímpanos. Faço-lhe sinal para entrar no carro e sairmos rapidamente daquela zona de perigo. Mohamed aceita a boleia sorridente, leio nos seus olhos que para onde quer que nos desloquemos o perigo irá ou virá ter connosco. Traduzo os seus gestos: «Alá é grande… morte à “shabiha”».
A terra solta constantemente um cheiro intenso a ódio que se entranha nas almas que andam por este mundo, para não mais as largar. Em Houla, onde o caos reina a seu belo prazer, as necessidades mais básicas, quanto vitais, não existem por aqui. Deslocamo-nos na periferia da cidade, onde uma janela com vidros ou uma parede de pé são excepção. Subitamente somos engolidos por um rio humano em clamor. É o funeral dos mártires de um bombardeamento a um bairro do centro da cidade, diz Mohamed. Passam seis caixões por cima do carro, levitando sobre as cabeças da multidão enfurecida. Como surgiu, num ápice, assim desaparece.
Mohamed faz-me sinal para parar… e sairmos rapidamente do carro. Ele ouviu antecipadamente, com certeza por hábito adquirido em muitos e longos meses de guerra, o roncar sibilante de uma patrulha de caças MIG 29. Abrigamo-nos numas ruínas onde  Mohamed entra sem hesitação. A chaleira, apesar da correria, mantém-se firme, sem perda de uma gota do negócio. Alguns segundos depois o ruído ensurdecedor dos aviões e uma explosão avassaladora fazem-me pensar que o tecto do firmamento vai desabar. Uma onda de fumo negro ergue-se da amálgama de ferros retorcidos esculpidos pela precisão de um míssil. Dou graças a Mohamed pela sua perspicácia e ouvido apurado.
É muito arriscado para um jornalista estrangeiro andar por estas bandas. No automóvel, agora transformado num monte de destroços enegrecidos pelo fogo, pereceu material de reportagem valioso. Ao pescoço tenho pendurada uma das máquinas fotográficas que, por sorte, arrastei comigo. Mohamed faz-me perceber com um gesto do polegar esquerdo para cima que é muito fixe a Olimpus estar intacta. Dá-me espaço e pousa para um disparo com a chaleira em grande plano… e o seu sorriso…, o seu sorriso inocente atirado para o campo de batalha.
Sigo o pequeno herói chefe de família por um labirinto de ruelas atafulhadas de destroços de casas, ainda há bem pouco tempo habitadas, mas às quais foi lançado o anátema de albergarem terroristas. Cruzamo-nos com mulheres que choram a destruição de todos os seus haveres. Procuram nos escombros calcinados algum objecto mais valioso…, uma recordação de família. “Indiferente” ao sofrimento dos seus compatriotas, Mohamed a todos oferece chá com um sorriso nos lábios, a troco de uma moeda… obviamente. Faz-me compreender que à noite, quando chegar a casa, ou ao que resta dela, quer ter o suficiente para alimentar a família. Vou batendo fotografias, como esta que acabo de fixar, da recolha dos cadáveres de uma mãe e dos seus dois filhos. Mohamed salta de espaço em espaço, sobre todas as desgraças que se atravessam no caminho…, e eu dou comigo a pensar que não deve ser muito diferente viver no “inferno”.
Vemos uma bola de fogo ao longe, seguida de um estampido violento, que nos quebra por segundos a audição. Uma nuvem de fumo negro desenha um cogumelo…, Mohamed fica agitado, gesticula e acelera o passo, a ponto que tenho dificuldade em segui-lo. Fico a saber que o fogo atingiu a zona da sua casa. Ele teme pela mãe e pelos irmãos.
Felizmente, hoje, todos estão bem.
Mohamed dá-me autorização para fotografar a família reunida…, uma recordação deste nosso breve encontro em zona de guerra.

AC