Sunday, October 21, 2007



O Tricas e o "ninho do cuco"

Texto de Luis Galhardas
Ilustração de Paula Costa

Deliciava-me ouvir o cantar melódico e ritmado do Cuco, ecoando Primavera fora e Verão dentro…, como se fosse hoje, oiço o “cu-cu”... distante entrando no meu pequeno mundo e atingindo o íntimo do meu ser, em baforadas de calor e bem estar.
Sempre que os meus tímpanos eram estimulados, aí ficava bons bocados no limiar da hipnose, ouvindo a nota musical repetitiva.
O som penetrante entusiasmava-me para sonhos do belo mundo campestre que ia observando, com curiosidade e admiração, em passeatas familiares à vinha da Faia, à quinta de Santo António, ou à romaria dos Prazeres.
Tinha, assim, esta ave em grande consideração, embora nunca lhe tivesse posto a vista em cima, o que lhe emprestava uma capa de mistério.
Até ao dia em que descobri o seu carácter torpe e malfazejo, ali pelos primeiros dias de escola.
Rapidamente me apercebi que o meu companheiro de carteira, o meu amigo Tricas, era especialista em ninhos e passarada.
Certo dia em que chegara atrasado à escola, motivo suficiente para ser aviado com umas bofetadas e um grande raspanete, em frente de toda a classe, confessou-me que tinha estado a observar um ninho de Cuco, com ovos quase a tirar passarinhos.
Fiquei perdido de entusiasmo e caí de borco na rasteira que o Tricas me passava.
As palavras saltaram-me da boca, emitidas com toque quase de exigência:
– Tricas amanhã quero ir contigo ver esse ninho! Sabes, tenho ouvido muitas vezes o cantar do Cuco, mas nunca vi nenhum.
O Tricas, matreiro, deitou-me um olhar condescendente de bom amigo e garantiu:
«Amanhã irás comigo até ao ninho do Cuco. Mas, prepara-te para teres uma surpresa porque é um ninho muito especial. E, já agora, trazes umas nozes e umas passas de figo, pois o ar do campo abre-me o apetite» – sugeriu ao de leve, mas em pulgas por enfiar o dente em guloseimas raras nessa altura do ano.
Depois de uma noite agitada, em que várias vezes acordei em sobressalto distante do quarto onde dormia, o dia amanheceu sorridente e arejado, coincidindo com o meu estado de espírito irrequieto.
Uma escapadela, às escondidas, à dispensa da casa municiou-me dos frutos secos suficientes para encher o Tricas de bons propósitos a meu respeito para a investida dessa manhã.
Engolido o pequeno almoço à pressa galguei o caminho para a escola, onde já era esperado.
E lá fomos, em direcção à “cova dos ginetes”, eu à descoberta de mais uma parcela desconhecida de um mundo em que, a pouco e pouco, se iam juntando as peças do seu complicado puzzle.
«Chiiiiu…! – alertou o Tricas quando lhe perguntei se queria nozes – não fales e não faças barulho com os pés, senão ele foge. O Cuco é muito espantadiço, e depois está horas e horas sem voltar ao ninho».
Sustive a respiração no mínimo indispensável e fui repetindo os passos do meu companheiro, seguro de que o seu rasto seria o mais indicado a seguir.
Ao chegarmos às imediações da grande cova, noutros tempos uma exploração romana de minério assinalada por marco milenar, fez-me sinal para a contornar-mos pelo lado esquerdo, em direcção a uma grande árvore que logo calculei ser a anfitriã do almejado esconderijo.
Sorrateiramente o Tricas puxou-me para o seu lado, já em cima da velha amoreira e, esticando o braço, apontou para um ninho robusto, mas disfarçado, que se adivinhava em pernada inacessível.
«O Cuco está lá a chocar, não o vês?» -segredou-me mesmo em cima do ouvido, provocando-me uma comichão calafriante.
Efectivamente sobressaía qualquer coisa escura por cima do rebordo do ninho, que adivinhei ser a ave. Pûs-me em bicos de pés, com a ilusão de que veria melhor, o que me fez desequilibrar e estatelar no chão, com ruído.
Logo de seguida ouviu-se um chilrear arrepiante e um bater de asas apressado de um pássaro preto de bico amarelo que se raspou num ápice, tempo suficiente, contudo, para o identificar com precisão.
Lancei de chofre ao meu amigo:
–Oh! Tricas, aquilo era um melro preto de bico amarelo, e disso não tenho dúvidas! Soltei a exclamação ainda meio aturdido com o logro em que caíra.
O Tricas gozava o pratinho em sonoras gargalhadas e, agarrado à barriga, não precisou de articular palavra para dizer que me pregara grande partida.
De cara séria e amuado fiz tenção de regressar à escola, não sem pôr em acção a única arma que tinha para vingar o desplante:
–Fica sabendo que não vais trincar uma única noz, e muito menos passas - sentenciei.
«Espera um pouco e deixa-me explicar porque te trouxe aqui… – argumentou insinuante e fazendo-me perceber que a fruta seca, no momento, era pouco importante – …ontem descobri que tu não sabias o “segredo” do Cuco… e mesmo que o melro não se tivesse espantado, ia acabar por te contar… não leves a mal porque não tive o propósito de o fazer por tal».
–E que segredo é esse? -inquiri meio irritado ainda.
Depois o Tricas disse o que tinha a dizer:
«O Cuco é uma ave que não presta, só me dando vontade de torcer o pescoço a quantos houver. Tu andas iludido com a falinha mansa de um cantar agradável.
Mas agora ficas a saber que o “passarão”, para não ter o trabalho de construir o seu próprio ninho, vai pôr os ovos, à socapa, nos ninhos das outras aves. Estas, sem se aperceberem da intrujíce, chocam-lhe os ovos e criam-lhe os filhotes».
–Mas isso é horrível, Tricas! Queres dizer que o Cuco se aproveita do trabalho das outras aves, e logo do trabalho mais cuidado que fazem, o da criação?
Devo ter mostrado um ar de indignação e amargura tal, que ele, em posição de ataque inicial, apressou-se a intervir em defesa do Cuco:
«Espera aí, não penses tão mal do Cuco que é um animal e procede por instinto. Eu estava a falar de cor, pois não me passa pela cabeça torcer o pescoço a qualquer ave»
E rematou, em estilo de conclusão:
«O pior é que anda muita gente a imitar o Cuco, aproveitando-se do trabalho dos outros, mas com a diferença que sabem o que estão a fazer. Tenho ouvido o meu pai contar histórias dessa gente.., a quem chama um nome esquisito... penso que é “oportunística”».
De regresso à escola, peguei no embrulho das nozes e das passas e depositei-o nas mãos do Tricas, como se de um prémio ganho se tratasse.
Eu, para mim, aprendi com ele essa grande lição do reino animal.
AC

Sunday, October 07, 2007














Residência: passagem de nível com guarda...


Há dias cruzei-me com um “maltês” instalado com sua pobre trouxa, algures na quase reformada passagem de nível, esquecido, quem sabe, por comboio que ali passou, entre um tempo que não chegou e outro tempo que nunca chegará.
E assim estava: com ar cansado de longa caminhada, encostado a velha parede de casa abandonada, porventura seu último refúgio, ou cais de sua última partida.
A primeira vez que nele reparei foi num desses dias que chamam “de Natal”, época de conforto e abundância para alguns, que não para esta “pobre criatura de Deus”, há muito engrenada em calendário monótono e repetitivo de miséria.
Era um dia Invernal, em início de tarde cinzenta, com chuva miudinha e frio a penetrar até aos ossos.
A cidade mostrava-se com aura fantasmagórica, mas sempre bela como é. Olhei as torres da Sé, meu símbolo preferido do burgo, cicerones cardeais de quem chega e de quem parte, tecto deste ambiente arquitectónico deslumbrante que dá prazer, tranquilidade e gosto de aqui estar.
Dispus-me a sair para observar as velhas cúpulas que ao longe se avistam de qualquer destino. Apontando ao céu lembram foguetões em rampa de lançamento, desde há séculos com partida adiada.
Como este homem que encontrei na passagem de nível, também ele adiado por um futuro que já não lhe pertencerá.
O seu semblante espectral sobressaía da parede onde procurava, certamente, um pouco de conforto perante a intempérie.
A pele castanha escura e enrugada, misto de muitas andanças ao ar livre e sujidade, contrastava com a cor dos farrapos acinzentados que lhe cobriam o corpo.
À sua frente meia dúzia de tábuas tentavam arder, contrariado o lume pelos pingos da chuva persistente.
De vez em quando ajeitava uma lambida e negra panela de barro, cheia de coisa nenhuma, à magra lareira, terminando o movimento num gesticular de espera, dando a ilusão que a comida estava quase no ponto.
E do bolso do tabaco do casaco, que foi esticando com os anos, ia tirando uma garrafa que metia nos lábios ressequidos, para longos goles de um líquido que tresandava a aguardente rasca.
Então os seus olhos, encovados e difíceis de vislumbrar, assomavam à luz do tempo com uma réstia de brilho e de alento.
Detive a marcha…, num acenar chamativo procurei que se aproximasse…, em vão.
Há muito abandonado a si próprio perdera, com certeza, o hábito de ouvir alguém chamá-lo.
Insistindo eu, agora com ruído, assestou em mim um olhar alerta e ar amedrontado de “animal” perseguido. Sem dizer palavra, a mão esquerda moveu-se em linguagem gestual, significativa de que o deixasse em paz.
Mesmo assim, cheguei-me mais perto daquela amálgama humana que expelia um cheiro nauseabundo e indaguei: -ó patrão, vem de onde vossemecê?
Ouvi, em sobressalto, a sua voz gutural, entaramelada pelo efeito dos frequentes goles de bagaço «vai chamar patrão a outro, que eu não sou patrão, nem criado de ninguém, -acentuou- e não venho de lado nenhum, ó meu cegueta…, eu estou aqui, nesta casa que me pertence e onde sempre tenho morado».
Fiquei de momento atrapalhado, mas percebi a agressividade e não desisti do diálogo: -não queria ofendê-lo senhor..., como é o seu nome?
Olhando-me, distante, e enfiando-me uma cuspidela quase em cima dos pés, adiantou: «podes chamar-me Zé, Francisco, Inácio, ou lá o nome que tu queiras, que a mim qualquer nome me serve». Dito isto, pôs novamente o gargalo à boca, para mais uma bagaçada.
-Realmente o nome de uma pessoa não importa muito - argumentei concordante; o que interessa é o que a pessoa é… ou não é…
«Ó pá, estou a ver que me começas a perceber… -ripostou; já agora, como tens cara de bom rapaz, empresta aí duzentos paus para ir encher a garrafa…, é que o chão da casa é húmido e eu preciso de aquecer os pés».
Em lance quase de magia surripiou-me da mão a moeda que tinha tirado do bolso e lá foi, aos solavancos, a caminho da tasca da esquina.
Quando em outro dia passei, surgiu de rompante à porta de batente da taberna e, com o braço direito erguido empunhando a garrafa de aguardente rasca, gritou-me:
«Ó pá, obrigadinho…, vou bebê-la à tua saúde…, se precisares de qualquer coisa aqui me encontras… passagem de nível com guarda, 7000 Évora.
Sinceramente agradeci.
AC

Friday, October 05, 2007

A rua do arco





















































A nova geração











EXALTAÇÃO!


Évora, do Alentejo a encruzilhada,
das “vielas” e dos becos sem saída...;
o grande e terno amor da minha vida,
sobre o meu leito sempre debruçada...!


Évora uma beleza delicada
de graciosos encantos revestida;
onde todo o artista tem guarida,
por cantores e poetas exaltada!


Do antigo e etéreo “coro dos meninos”
a grandiosidade magistral
donde brotavam cânticos divinos...,


Évora, “Património Mundial”,
a cantar pela voz dos velhos sinos
da sua majestosa Catedral!...

(soneto de José Camões Galhardas)

Thursday, October 04, 2007




gosto de castelos,
de cada um em particular...,
porque são velhos e são belos...
o que é raro não é vulgar...




Convento da Flor da Rosa

Sede da ordem militar de S. João do Hospital ou dos Hospitalários, que para aqui se transferiu de Leça do Bailio, sendo então seu prior D. Álvaro Gonçalves Pereira, pai de D. Nuno Álvares Pereira. (hoje tem anexa uma pousada, que ao tempo da fotografia não existia)
AC