Tuesday, September 21, 2010









Foi a Primeira Fotografia!


A cena campestre, que nos é dada observar, parece ter sido gravada na tela pelas mãos de um artista desconhecido. Mas não se trata de uma tela, nem o artista é desconhecido.
A imagem reconhecida como a primeira fotografia que o mundo viu, foi captada por um inventor francês em 1826, cerca de 60 anos antes da invenção oficial da máquina fotográfica.
A impressão (8 x 6.5 polgadas) foi captada por Joseph Nicephore Niepce, numa fina chapa de peltre e foi analisada por cientistas do Getty Conservation Institute, num projecto conjunto com especialistas franceses, que procuram desvendar o misterioso processo químico pelo qual a imagem foi obtida.
Niepce chamou-lhe heliografia, em reconhecimento ao poder do Sol.
«Se pensarmos na história da fotografia, no desenvolvimento do filme e da televisão, tudo descende desta 1ª imagem». É a trisavó de todas essas tecnologias – é o princípio!

FLASH

Friday, September 17, 2010




(foto: O POVO CIGANO - 2ª edição,1996, Dr. Olímpio Nunes, ilustre ciganólogo)




Este pequeno conto foi escrito há muitos anos. A ele voltei agora pela necessidade que senti de expurgar, sempre um pouco mais, o meu imaginário colectivo sobre os ciganos, sabendo eu que o mesmo será sempre "feio". Felizmente tenho um imaginário pessoal sobre os roms bem mais favorável e tolerante. Sei que, em todo o lado, ninguém os quer por vizinhos, e que se lhes deita a culpa por qualquer tipo de crime que aconteça anónimo, bastando para tal estarem por perto..., enfim..., podia desfiar um sem número de razões porque são malditos.
Mas estas deportações dos manouches, executadas pelo governo Francês, não auguram nada de bom. Pequenos acontecimentos na História cresceram e tornaram-se incontroláveis...





Mariana vive numa barraca de madeira, desgarrada do pequeno bairro entremeado de casas pobres e outras que atestam algumas posses, nas traseiras do cemitério.
Conheço esta cigana, de idade indefinida, desde há muito, o que me faz pensar que temos, mais ou menos, as mesmas primaveras, e não lhe conheço parentes, o que não é habitual na sua etnia sempre com famílias numerosas. Disse-me um dia, meio a sério, meio a brincar, que quanto a anos não sabe às quantas anda e que ficou esquecida no que foi outrora terreno baldio, nos arrabaldes da vila, em época de grande fome, tempos longínquos e difíceis, esses, em que evita cismar. Não que isso lhe ocasione qualquer desejo íntimo de voltar a ver os seus, que não sabe quem foram, ou quem são, mas pelo simples facto de se saber abandonada ali, nas traseiras de um cemitério, onde até os mortos são recordados de vez em quando.
Mariana tem, apenas, uma visão enevoada de ver partir uma caravana numerosa mas não lembra a fisionomia de ninguém, nem sequer o nome de algum miúdo mais próximo da sua leva. E, curiosamente, vê e ouve, com nitidez, um pequeno cão malhado, preso ao eixo de uma carroça desengonçada, em lamuriante ganideira que se vai diluindo no espaço entre a parede das traseiras do cemitério e o infinito.
Hoje tem, para si, a certeza que a família, vinda não sabe de onde, acampou no local onde se encontra o bairro que então não existia. E no dia de levantar arraiais esqueceram-se dela, menina pequena, que se teria afastado no entusiasmo de alguma brincadeira.
Quando alguém deu pela sua falta, muito depois do laticar do cão malhado, era tarde, longe, e menos uma boca com quem dividir as migalhas tão difíceis de angariar para o sustento do dia a dia.
Assim engendra a história que lhe dá a razão de existir.
Recolhida por um casal de velhotes sem filhos, a ti Mariana, que lhe deu o nome e o ti Júlio Alabaça, fizeram por ela o que a idade e a vida lhes permitiu.
Deixaram-lhe a pequena barraca da horta que cultivaram em tempos, hoje engolida pelo bairro e são agora seus vizinhos do lado de lá da parede do cemitério, que no Verão a recompensa com sombra acolhedora e no Inverno a protege da nortada áspera, que ali sopra por vezes com ruído ensurdecedor.
Mariana tem por mim um carinho desmesurado desde o dia em que lhe dei atenção e a tratei de uma dor de dentes velhaca.
«O senhor doutor é muito bonzinho, Deus o abençoe pelo bem que me tem feito, que eu não lhe posso pagar, e dê sorte à sua senhora e aos seus meninos, que é o que eu mais lhe desejo, que essa sorte para mim não posso desejar; e, já agora, veja lá, senhor doutor, se a sua senhora tem uns sapatinhos e uma roupinha velha que já não queira, que a mim tanta falta me faz…», -e por aí adiante, a lengalenga estende-se ao jeito de bom augúrio e benção iniciais e termina com o pedinchar, que lhe está na massa do sangue, do que quer que seja, pois de tudo necessita Mariana Só.
Quando me procura a qualquer hora do dia ou da noite, já sei que a aflição física que a apoquenta é uma dor em qualquer sítio do corpo, única “doença” que conhece, ou da alma que, essa, sempre lhe dói.
Costumo brincar com ela, comentando: -isto aqui não é uma igreja; e tirei o curso de médico, não de padre, -o que logo a põe a rir.
Um dia, vindo da caça, parei junto à porta da “mansão”, onde se encontrava sentada no poial, apanhando a soalheira do fim da manhã.
Tirei um coelho e uma perdiz do pendurador e depositei a caça no colo encovado de Mariana Só, ao mesmo tempo que lhe ia recomendando, com o intuito de evitar um desfiar de agradecimentos: -olha que o sol nesta altura do ano é manhoso, e se adoeces, depois, não tens dinheiro para me pagar a consulta!
Riu-se, envolvendo-me com o íntimo do seu ser em gratidão e tentou devolver-me as oferendas com delicadeza: «senhor doutor, isto faz mal ao meu estômago que é tão fraquinho e não tenho dentes para mastigar. Leve para os seus meninos que estão em idade de crescer; coitadinhos, bem precisam assim de uma carninha sadia como esta. Eu logo passo em sua casa para me dar o resto do pão que sobrou de ontem e um litro de leite para fazer umas sopinhas, que tão bem me sabem e que sempre consigo desmoer melhor».
-Guarda lá a tua parte da caçada e deixa-te de conversa fiada, que os meus filhos também aqui têm o seu quinhão, para o caso de hoje começarem a gostar de carne de coelho ou de perdiz, -alvitrei em tom desmotivador de qualquer outra reacção.
Os olhos expressivos de Mariana, tremelicando, fitaram os meus, deixando-me adivinhar que estava comovida.
Tentei fazer passar a ideia que não tinha reparado e procurei galhofar com a minha amiga cigana: -tu és Mariana de nome próprio e Só de apelido ou só Mariana, querendo o só significar que não tens mais nenhum nome?
Mas logo me arrependi da galhofa, de ali ter passado naquele dia e do resultado desastroso do que eu pretendia que fosse uma brincadeira geradora de risota mútua.
Mariana desatou num pranto incontrolável, soluçando como se fosse criança, e despejando rios de lágrimas pelos sulcos profundos da face.
Surpreendido pela emoção inesperada que provocara, indaguei com ternura, ao mesmo tempo que lhe afagava o rosto e as mãos: -não tinha intenção de te ofender, mulher; e o que disse foi apenas para me meter contigo…
«Eu sei, eu sei, senhor doutor, -repetiu, ainda soluçando, mas mais calma. O que me disse fez-me voltar a ver a névoa de quando fui menina, aqui neste mesmo sítio; e o que mais me enraivece é não ter explicação para o que me aconteceu, pois todos os que conheço da minha “raça” têm uma amizade que nunca acaba para com os seus… -deixou a conversa no ar, por alguns segundos, e depois rematou: eu sou mesmo Mariana Só, de nome e de tudo o mais…».

AC