Sunday, April 03, 2022


 

 

Numa noite (supostamente) de Natal...

 

 

Uma menina e uma velha vagueiam na estrada que se transformou num mar de lama, entre colunas de soldados de aspeto medonho, carros de combate fumegando e rugindo ameaçadoramente e um frio agreste que se instalou por todo o lado, muito antes da chegada do Inverno.

Martina, como se chama a pequena, não deve ter mais de seis anos e já transporta a beleza das mulheres da região – cabelos de ouro, olhos azuis, nariz e boca com traço perfeito. Entre o braço esquerdo e o peito sustem com jeito e carinho maternais uma boneca, brinquedo que conseguiu retirar são e salvo da casa da família totalmente arrasada pelo fogo da artilharia pesada. E no que foi o seu quarto de dormir recuperou também, quase intacto, um carrinho de madeira que servia para brincadeiras ao ar livre com as amigas e onde transporta agora alguma roupa que as chamas não consumiram.

Martina viu os corpos dos pais e dos irmãos despedaçados entre os escombros mas não deitou uma lágrima, não disse uma palavra, nem emitiu um sinal de desespero perante o cenário dantesco a que viu reduzida a família.

A velha tem o peso dos anos marcado no corpo. Foi bonita? Com certeza, as mulheres aqui são todas bonitas quando novas. Depois criam barriga, quer tenham filhos, quer não, engordam e por fim mirram, como árvores sem seiva aparecem cheias de rugas.

Maria Borosov – é o nome da mulher – há muitos anos que se arrasta só, entre privações de toda a ordem e guerras.

 Poderia ser avó de Martina mas não é. São apenas companheiras no mesmo caminho que não tem outro destino que não seja fugir da zona de combate. Encontram-se num fim de tarde quando procuram abrigo da intempérie e da bandidagem, na ruína de uma casa esventrada.

A velha Maria Borosov angariara um pão e alguma fruta que reparte com Martina. Depois anicham-se uma na outra para melhor resistirem ao frio.

Ao longe ouvem-se os rebentamentos – mesmo de noite as armas não se calam «porque o trabalho tem que ser muito produtivo».

-De onde vens tu, pequena? – pergunta a velha.

Martina encolhe os ombros, em gesto significativo, e aponta em direcção a sul. Esbatidos no céu, avistam-se os contornos dos montes para lá dos quais fica a sua cidade ou o que resta dela – um amontoado de ruínas fantasmagóricas.

-Também vens da montanha, como eu, a fugir da guerra que ainda nos mata a todos!  –E como te chamas tu? – insiste a velha.

Martina volta a encolher os ombros, pois não fala desde o dia em que viu a casa e a família desfeitas. Mas desta vez duas lágrimas rolam pela face da menina que recorda os dias felizes que passou do outro lado da montanha, da qual se afasta cada vez mais. E tenta perceber porque apareceram tantos soldados e homens armados que em menos de dois dias transformaram em cacos a sua cidade. Com estes pensamentos terríveis para uma criança da sua idade, Martina aconchega-se melhor no corpo da mulher e deixa-se dormir.

Maria Borosov sente o calor daquele corpo franzino que lhe dá algum conforto. Olha o céu em agradecimento pela dádiva daquela companhia.

A abóbada celeste está estrelada como nunca e por cima da casa destelhada, que lhes serve de refúgio, distingue uma estrela por ser a mais brilhante no firmamento.

Apesar do ribombar longínquo e contínuo dos canhões, imediatamente pensa para si: -hoje deve ser noite de Natal – se não é poderia ser – e aquela estrela ali por cima... ...talvez queira indicar que aqui se encontra o Menino. Mas desta vez engana-se... ...porque afinal é uma Menina! 

É o último pensamento da velha Maria Borosov. Um tiro, sabe-se lá vindo de onde, transforma em pó o «refúgio» em que a menina e a velha passam a noite (supostamente de Natal).

 conto de Luís Galhardas

ilustração de Paula Costa




Sunday, June 14, 2020

Consultório do Dr. Jorge




 


No consultório.com…

Chegou o frio..., ainda não muito intenso mas a provocar já uma onda de “resfriados” nos marados que fazem do desagasalho uma certidão de fortaleza. Gozo interiormente ao vê-los transpor a porta do consultório fungando a sua maleita.
«Não sei como arranjei isto doutor... eu nunca me “gripo” pois tenho uma saúde de ferro... atxim, atxim, atxim...».
–ÓÓÓ… por favor..., não espirre para cima de mim... e ponha a mão com um lenço a tapar o nariz e a boca… espirre para o lado... você em cada espirradela que dá expele 1 milhão de vírus para a atmosfera…, neste caso para cima de mim.
Sou ansiosamente interrompido: «será a gripe do conona vírus... doutor?...»
–Conona a sua tia…, não não é..., a gripe fugiu para o Pólo Norte com medo do Dr. Jorge… os vírus também têm medo, sabia(?)..., de tipos como o Dr. Jorge que vivem na caverna da doença (vulgo hospital).
«Por acaso não sabia... nem sei quem é o Dr. Jorge…, que mete medo aos vírus... deve ser um tipo bestial... se soubesse tinha ido ter com ele antes de me ter “gripado”... atxim, atxim, atxim…
–Nããooo... não…, …espirre para um lenço de papel… como lhe disse…, ou para a prega do cotovelo…, lá me espetou você com uma tonelada de vírus em cima… outra vez!
«Uma tonelada de vírus???
 –Modo meu de falar... são muitos... os vírus!
«Então doutor... se não é a gripe do conona é gripe da normal... e esta despacha-se facilmente, não é?...».
–Não há uma gripe dita normal…, só na cabeça de alguns idiot…, …e isso de se curar facilmente – o “despachar” é um termo bastante inapropriado…, e logo no caso dos vírus… upa upa…, depende do seu estado de saúde anterior… se tem doenças crónicas… diabetes…, asma…, artrite… e mais umas quantas mazelas que apoquentam o ser humano quando muito bem calha…, ou melhor, quando está determinado; homem você sabe o que é o determinismo científico… … nunca ouviu falar das causas e dos efeitos das coisas?...
«Nada disso… no que diz respeito a males crónicos sou perfeitamente saudável!... e determinado a sê-lo».
–Como sabe você que é perfeitamente saudável(?)… e morre tanta gente perfeitamente saudável!...
«O doutor está a assustar-me…».
 –Eu estou a assustá-lo?… impressão sua… argumento apenas a sua afirmação «como pode alguém dizer que está perfeitamente saudável», quando o Dr. Jorge da sua caverna nos envia Super Bactérias e Vírus, avidamente desejosos de nos afincarem o dente…; quando muito você pode dizer que os seus pratos da balança saúde-doença se vão equilibrando…, por agora.
«Mas afinal esse tal Dr. Jorge… que afasta… ou lança calamidades… existe mesmo essa caverna do Dr. Jorge?».
–Ó meu caro… tão certo como dois mais dois serem quatro… ou eu não me chame Jorge.
«???!!!...!!!???»
AC