Wednesday, October 25, 2006

Monday, October 16, 2006






A pequena lebre









Uma vida incerta será a desta pequena lebre, ainda na "cama" onde a mãe a pariu, alimenta e protege.
Será sol de pouca dura: logo que se aventure a correr mundo, encontrará mil e uma adversidades, a pior e mais certa das quais será um frente a frente com um caçador.
Teve sorte o animalzinho..., alguém lhe fez pontaria com uma máquina fotográfica, o que talvez seja um bom prenúncio.
Aqui fica o disparo.
AC

Sunday, October 15, 2006




“S.O.S.” no Mar de Barents

O submarino nuclear Kursk afundou-se a 12 de Agosto de 2000, durante um exercício naval no mar de Barents, tendo nele perecido os 118 tripulantes a bordo. Duas enormes explosões rasgaram o casco do K141, matando então grande parte da tripulação. Mas 23 tripulantes sobreviveram durante algum tempo. Estes 23 homens refugiaram-se no compartimento 9, o último do navio e localizado na popa. Assim o conta este relato ficcionado, que tenta descrever o drama humano que ocorreu naquele dia 12, no fundo do mar de Barents, e publicado na edição do jornal Dário do Sul de 1 de Setembro de 2000. O compartimento 9 é referido posteriormente em carta encontrada no cadáver resgatado do tenente-capitão Dmitriy Kolesnikov: “13,15. Todo o pessoal dos compartimentos seis, sete, e oito passou para o compartimento nove. Somos 23. Tomamos essa decisão por causa do acidente. Ninguém pode subir… escrevo por tacto”
O resgate do Kursk e da sua tripulação arrastou-se por muitos meses que se seguiram, aumentando o sofrimento das suas famílias.
In memoriam.
(fotografia AR)

Dima aguarda com alguma ansiedade o fim das manobras navais da Frota do Norte. E o facto prende-se não com a saturação provocada por muitos dias passados no mar, a bordo do submarino nuclear Kursk – a jóia da coroa de toda a Armada Russa – onde se encontra em regime de voluntariado desde há seis meses, a maior parte do tempo navegando nos fundos de águas frias e escuras, que raramente vê, e muito menos com qualquer receio inconsciente que possa ter do risco sempre presente na vida de submarinista, pois o colosso, de cuja tripulação faz parte, é não só inafundável, como precavido contra qualquer tipo de acidentes, pelos mais modernos meios da navegação.
Dima faz dezanove anos dois dias após o termo dos exercícios em que está envolvido o Kursk e esse é o facto que lhe provoca, digamos, não ansiedade mas alguma inquietação.
A mãe e a namorada vêm juntar-se-lhe na Base Naval de Murmansk, para juntos festejarem o aniversário de Dima. Sim, este é o facto que o traz inquieto, pois, vindo das águas gélidas do Mar de Barents, sente necessidade do calor aconchegante da família.
«Quem diria que o rapaz vai fazer dezanove anos?», questiona a sua imagem devolvida pelo único espelho da camarata, onde todo o espaço é pouco. O seu semblante de menino, em que desponta só agora alguma penugem, contrasta com o uniforme de marinheiro do submarino nuclear Kursk, talhado, pensar-se-á, para gente com aspecto mais endurecido. Mas Dima vê-se como um sortudo por conseguir um lugar na tripulação do navio que está baptizado com o nome da sua terra natal – a cidade de Kursk – situação que muitos jovens desejariam para si. Com o curso de técnico de motores recentemente concluído e uma compleição física razoável, ultrapassa sem dificuldade todas as barreiras, até vestir a farda de tripulante do K-141. Dima recorda o dia em que ele e os outros camaradas de incorporação vêem pela primeira vez o Kursk e entram pela escotilha de acesso à ponte de comando daquele “monstro marinho de aço” para uma visita de reconhecimento ao que será, dentro em breve, o seu navio e modo de servir a pátria Russa.
São seis e trinta da manhã de 12 de Agosto de 2000. Dima está estendido em cima do beliche que partilha com dois colegas que prestam serviço, como ele, no compartimento das máquinas. Está acordado, observando na penumbra da zona de descanso, mas como se fosse iluminada por um potente flash, a fotografia desse primeiro dia, em que se encontra acompanhado pelo seu amigo e camarada de tripulação, Liocha. Os dois jovens conhecem-se durante a recruta e fazem-se grandes amigos. Dima aguarda as sete horas da manhã, inicio do seu turno, gozando sensações rememorizadas por aquela fotografia de há meses atrás, tirada na coberta do Kursk. Vem-lhe à mente a sensação estranha que se apodera dele, quando vê o submarino nuclear K-141 pela primeira vez. O oficial de instrução mantém os marinheiros perfilados e em sentido, enquanto elogia o que considera ser um exemplo do sucesso tecnológico e do poderio militar ao serviço do povo russo – Classe Antey, tipo 949 A, SSGN, no activo desde 1995, pode navegar a uma profundidade de 500 metros...
“O gigante de metal” produz uma imagem de resistência e poder naval sem limites, ao mesmo tempo que o invade com aquela sensação estranha que a fotografia recria da mesma forma, como se fosse no próprio dia” – um calafrio percorre o corpo de Dima, o aço negro que constitui a estrutura exterior do submarino intimida-o, psicologicamente, com uma visão de irrealidade brutal, que lhe é transmitida pela envergadura do vaso de guerra, impossível de abarcar de uma só vez no campo visual.
A divagação de Dima é bruscamente interrompida pelo toque da sirene a chamar o turno das sete da manhã. Num ápice veste-se, passa a cara por água, entra na cantina sempre impregnada por um cheiro enjoativo, que logo de manhã lhe faz perder o apetite, e aí vê Liocha que faz o percurso inverso ao seu – trocam um sorriso aberto e dão um pequeno encosto ombro a ombro, sinal de que tudo vai bem . Ao segundo toque da sirene, que indica que são sete da manhã em ponto, encontra-se no seu posto na sala das máquinas/compartimento 9 do submarino nuclear Kursk, tecnicamente conhecido por K-141. O pessoal esmera-se na limpeza e arrumação do compartimento, pois vão ter a visita do comandante Gennady que nessa manhã passa revista a todo o navio, acompanhado por altos comandos da Frota do Norte.
Subitamente Dima ausenta-se para centenas de quilómetros de distância, pensa na mãe e na namorada que brevemente farão a viagem de quarenta e cinco horas de combóio de Kursk até Vidyayevo, para se abraçarem e conviverem durante a licença de dois dias que lhe é concedida no fim do exercício naval e que coincide com o seu aniversário. O chamar pelo seu nome, no tom inconfundível e modo sarcástico da voz do chefe da secção, trá-lo de volta à azáfama da sala das máquinas.
Pelos altifalantes de cada compartimento do navio sai a voz do Imediato que anuncia uma subida à superfície, o que desencadeia em Dima outro momento de descontracção e alheamento – “há vários dias que simulam aproximações a alvos nos fundos do Mar de Barents, a uma profundidade variável, entre cinquenta e cento e cinquenta metros ; sabe-lhe bem ouvir a voz de subida, sentir a proximidade do céu azul ou encoberto, da superfície do mar calmo ou agitado, batendo no casco do Kursk, escutar o vento uivante que por aquelas paragens é frio e endiabrado..., mesmo que não seja permitido ir até à coberta contemplar os elementos e perscrutar a linha do horizonte até onde a vista enxerga”...
Quando Dima se concentra pela segunda vez não tem tempo de reiniciar a sua tarefa.
Um estoiro, que parece ter origem na zona da proa, faz abalar o Kursk com alguma intensidade, quando se encontra na manobra de subida, a cerca de vinte e cinco metros da superfície. A energia é interrompida sucessivamente, os geradores de apoio não funcionam, há curto-circuitos que lançam faíscas em todas as direcções, em diversos pontos da instalação eléctrica da sala das máquinas e um pequeno incêndio surge num disjuntor. Dima sente o desejo de percorrer os outros compartimentos para se informar do sucedido e ver, com os seus próprios olhos, que Liocha se encontra bem.
«Terá sido um embate com outro submarino... ou com um navio de grande calado?... ou um torpedo mal lançado que explodiu perto da proa?...», são duas perguntas, em modo quase afirmativo, que Dima equaciona expeditamente para explicar o sucedido… e dirige aos camaradas do 9.
A voz do comandante Gennady é agora expelida pelos intercomunicadores de bordo, denunciando exasperação e alarme, dando ordens em tom inusual: –todo o pessoal aos seus postos..., injectar ar nos compartimentos centrais..., verificar o mecanismo de protecção dos reactores nucleares..., quero um relatório imediato do que se passou na sala dos torpe...
O altifalante é suspenso bruscamente e nada mais se ouve porque um estampido terrível lança um potente sopro vindo dos lados da proa; em simultâneo o Kursk é sacudido com tal violência que os marinheiros do compartimento 9 são projectados como marionetes contra a maquinaria e paredes de revestimento interior. Depois de um breve instante de atordoamento e de silêncio tumular, chega-lhe o ecoar de mistura de vozes, de gritos lancinantes, em outros compartimentos mais próximos do 9, logo abafado por um estrondo medonho característico, como o ribombar de um trovão, que aumenta constantemente de intensidade, e Dima adivinha ser a fúria das águas do Mar de Barents, que tomam apressadamente conta do K-141. Percebe-se que o submersível desce sem governo, que os dois reactores nucleares foram automaticamente desactivados, pois a falta de energia agora é total. Dima, aturdido, tenta levantar-se mas logo é arrastado pela inclinação da descida e tropeça em alguém que se encontra caído. Alguns gemidos dão sinal de gente do seu lado esquerdo, porque as vozes e gritos vindos dos outros compartimentos emudeceram. Apenas se ouve o ruído da água, muito perto mas sem o furor diabólico de há pouco. A escuridão é pavorosa e a temperatura baixa assustadoramente. O jovem marinheiro sente esse frio doloroso que lhe atinge os ossos e pensa no seu amigo Liocha, quando é arrojado por outro impacto do Kursk, que logo de seguida parece imobilizado.
Deduz que o mais moderno e poderoso submarino russo bate no fundo do Mar de Barents.
Tenta erguer-se novamente, seguro às tubagens das canalizações que descobre facilmente pela rotina de conhecer, de olhos fechados, todos os cantos do compartimento 9. Isso dá-lhe alguma vantagem perante a treva que paira a toda a volta e lhe provoca alguma angústia que tenta contrariar. Como quem sai de um estado de anestesia, começa a sentir uma forte dor na nuca e em todo o lado esquerdo do corpo, que relaciona com o facto de ter sido projectado pela potente onda de choque que se expandiu por todo o submarino. Quando fica em pé as pernas tremem, um suor gélido e viscoso cobre-lhe todo o corpo, tem dificuldade em respirar e em mover-se... é obrigado a fazer um esforço considerável para se manter firme...
A prática de ir e vir das profundidades diz-lhe que o Kursk está assente de proa e adornado a bombordo.
Ouve gemidos ténues, pela segunda vez. Chama pelos nomes dos camaradas que estão com ele na sala das máquinas: «Vladimir, Maxim... se me ouvem respondam... meu Deus o que nos está a acontecer?... que pesadelo é este?... Vladimir…, Maxim…, digam qualquer coisa..., estou a falar convosco!». Dima fala com modo irritado mas suplicante, desejando fervorosamente ouvir outra voz que não a sua. Obtém como resposta um estremecimento brusco do Kursk, acompanhado de um rugido fantasmagórico. Por instinto deixa-se cair com o “monte de aço” – inafundável. Juntos gesticulam o último estertor...

AC

Tuesday, October 10, 2006











Por onde anda o comboio?…


Paro na passagem de nível, encosto o ouvido ao carril, o que me permite ter a sensação auditiva do comboio em movimento, ainda a alguma distância.
Logo vê-se a fumarada que localiza a deslocação da locomotiva. Um silvo ecoa no ar, vindo de sul, e, a pouco e pouco, o som da composição em movimento toma conta do ambiente que envolve a estação. Os passageiros aprumam-se na gare, fazendo lembrar uma parada militar. Finalmente aparece o comboio na curva que antecede a estação, o que provoca alguma agitação.
Estou de Kodac em punho…, pronto a captar o momento da chegada do primeiro comboio da linha do sul…
AC

Sunday, October 08, 2006











Castelo de Valongo


Fantasmagoricamente belo…,
em sobranceira colina
está o nobre castelo
de Valongo…, como se assina.


Escondeu formosa princesa,
que ali viveu desterrada.
Sua memória está acesa…,
de mil vezes contada.


Em noites de "luar branco"
diz-se vê-la passear!
Pela liberdade é seu pranto,
porque lhe não pode chegar.
...
Ao viajante que procura emoções fortes, aconselho uma ida ao Castelo de Valongo. Chega-se pela estrada de Évora - Reguengos de Monsaraz, vira-se à esquerda na direcção da barragem do Monte Novo - Santa Suzana, deixando rolar o carro a baixa velocidade para gozar a paisagem, típicamente norte alentejana, e com atenção a um desvio, à direita, Valongo - Montoito. É uma estrada secundária com o piso relativamente bem conservado e algumas curvas que é preciso atacar com cautela. Numa dessas curvas, com lomba, aparece este fabuloso forte medieval.
Parei o carro, fiz as primeiras fotografias e descarreguei em folha amarelecida de jornal, único papel à mão, as sensações que captei do quadro pintado mesmo à minha frente.
AC
O sítio[1] teve provavelmente ocupação desde a época romana, depois no período visigótico e época islâmica. Foram os muçulmanos que edificaram o forte, como o comprovam algumas inscrições islâmicas nos seus muros.
Durante a reconquista cristã, a sua estrutura foi reconstruída durante o reinado de D. Afonso III (séc. XIII).
[1] No lugar de S. Vicente de Valongo há património megalítico.

Saturday, October 07, 2006


«Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
O teu encantamento!»
(Miguel Torga/Poesia Completa: Mar)


Um Filho do Mar
Teodoro Algarvio tinha estampada no rosto a profissão que exercia desde há sessenta e quatro anos.
Com apenas seis anos começara a ajudar o pai nas andanças da pesca e rapidamente aprendeu a engodar, a ajeitar anzóis com isco para pescar à linha, a remendar as redes, a escolher os melhores sítios para colocar os aparelhos e mais um sem número de segredos dessa vida feita no mar.
A cara queimada e enrugada da frequente exposição ao astro, encimada por um boné de xadrez carcomido pela maresia, atirado sobre os olhos, emprestavam-lhe um ar enigmático de quem tudo vê e não é visto.
Algarvio não era nome ou apelido mas alcunha que lhe ficara do pai, noutros tempos vindo dos lados do Algarve.
Ele, alentejano dos quatro costados, por incrível que pareça, nascera no mar numa noite em que a mãe, já em adiantado estado de gravidez, quisera acompanhar o seu homem na recolha dos enganos da lula. Foi nessa noite quando abriu as narinas para a primeira golfada de ar vital que foi inundado, até ao íntimo do seu pequeno ser, por aquele cheiro ao mar que amou desde então.
Descobri a pequena aldeia de pescadores num daqueles passeios sem destino. Ali o tempo tinha feito uma pausa e era agradável permanecer.
Uma longa rua de empedrado bem polido era amparada por casas baixas, quase todas de velhos lobos do mar, terminando a uma centena de metros do oceano. E havia um terreiro, contornado também por algumas casas, que servia ora para campo de futebol da miudagem, ora para o jogo do chito depois da refresca com umas cervejinhas ou simplesmente para dar meia dúzia de lérias e ver chegar os pequenos barcos da faina.
Aluguei um quarto em casa de gente simpática, com janela para o porto e para a ilha com seu forte seiscentista, que vi pela primeira vez.
Um turbilhão de sensações de prazer tomou conta dos meus sentidos sem qualquer resistência.
A aldeia parecia estar suspensa, assente em avantajado promontório que ali avança sobre o mar. E daquele terreiro, quase sempre animado de gente, descia-se para uma pequena enseada natural que era o porto de pesca.
Logo numa primeira investida exploratória, no dia da chegada, cruzei-me com o ti Teodoro que nessa tarde acabara de chegar da pesca. Não estava mais ninguém no porto. Descalço, com as calças arregaçadas até aos joelhos, cigarro colado ao canto da boca, já tinha amarrado o barco ao cais e feito o transbordo do produto da pescaria. Entretinha-se na limpeza da embarcação.
Aproximei-me e cumprimentei o pescador: –boa tarde senhor..., e pelos vistos também foi boa a pesca!
Uma boa tarde seca e um olhar de relance na minha direcção, escondido pela pala do boné e impedindo-me de lhe ver a expressão do rosto, desencorajaram-me a meter mais conversa. Fiquei a vê-lo carregar o saco às costas, subir a ladeira em direcção à aldeia, entrando no pequeno bar que ficava no cimo da íngreme rampa, como que a cavalgar o porto.
Nessa noite, embora cansado da viagem e com o corpo amolecido por tantas orgias com a natureza, aproveitando o pretexto de tomar uma bica, resolvi meter o nariz no Café Paraíso, assim se chamava o pequeno bar que postado à entrada do acesso para a enseada portuária, tal e qual sentinela alerta, vigiava invariavelmente quem entrava e quem saía.
Aproximei-me do balcão, bem iluminado por um candeeiro petromax que deixava o resto da sala na penumbra, e tomei o café de costas viradas para a luz, com disfarçada intenção de observar o ambiente.
O recinto era atarracado, apenas com duas mesas, uma de cada lado e algumas cadeiras dispersas. À esquerda do balcão havia uma porta por onde era expelido um ruído, ensurdecedor, que denunciava ser a casa dos matraquilhos. Pelas paredes viam-se pendurados um emblema do Benfica e outro do Sporting, muito amarelecidos, alguns calendários com insinuantes mulheres nuas, fora de prazo, tanto ao gosto das tascas portuguesas, um diploma a atestar o proprietário como “exímio tirador de imperiais” e um azulejo emoldurado, onde se lia a seguinte quadra: não venhas cantar o fado/que já não há dinheiro,/pois acabou-se o fiado/durante o ano inteiro.
Sentado numa das mesas lá estava o velho pescador, provavelmente desde que o vira chegar do mar, dispondo ao acaso, no tampo gasto da mesa de madeira, as pedras de um jogo de damas.
Topou que o observava.
Dirigiu-se-me de surpresa, com o mesmo tom seco dessa tarde, mas desta vez de olhar espevitado, bem à mostra, e ar dominador da situação: «oiça lá, vomecê sabe jogar às damas?»
Apanhando-me desprevenido, não me perguntou o nome ou de onde era natural, questões por onde se começa qualquer conversa com gente desconhecida, mas logo despejou aquela interrogação sacana – se sabia jogar às damas – à qual respondi com ingénua franqueza: -olhe, por acaso não sei... ou melhor, jogo mal, porque apenas sei que as pedras são brancas e pretas... e andam uma casa de cada vez... da táctica do jogo não percebo nada.
Ele tirou o boné da cabeça, coçou a careca com ar espantado e, depois de prolongada passa no cigarro, exclamou com incredulidade: «qual táteca qual quêi... atã se nã sabe jogar às damas o qu’é que vomecê sabe fazeri?»
Dito isto perante a pequena assistência do bar, riu-se à descarada com o meu ar de atrapalhação pela ignorância de não saber jogar às damas.
Com o mesmo repente da tirada inicial convidou: «sente-se aí qu’ê ensine-lhe.»
Ri-me também e aceitei a oferta que me fez amigo de Teodoro Algarvio.
O jogo de damas deu início a inesquecível convivência com este pescador que me ensinou, entre lances de como se comem três, os segredos do mar e da pesca, histórias e lendas fantásticas da ilha, com piratas e corsários metidos pelo meio, e os recantos inimagináveis da bela costa alentejana.
Eu ouvia, quase sempre, mais do que falava.
Numa ida à ilha, inesperadamente, contou-me o seu primeiro encontro com o mar. Recordo a convicção e orgulho que empenhou nas palavras: «devo mais a estas águas que a meu pai e a minha mãe..., quero tanto a este mar como aos meus filhos..., aqui vim ao mundo e me fiz homem, daqui levei sempre o sustento para a família..., agora estou velho e aqui quero morrer...»
Ficou em silêncio, pensativo, a olhar o mar sem fim.
Voltei em outro ano com ideia de ficar por uns dias e desejo de rever o meu amigo Teodoro.
A terra tive dificuldade em reconhecê-la – prédios aberrantes, parques de campismo, restaurantes atafulhados de gente... e até caixas de multibanco.
O pequeno bar do porto fora engolido por qualquer coisa mais parecida com gigantesca gaiola de piriquitos.
Soube, por um companheiro do jogo de damas, que Teodoro Algarvio saiu numa noite de Lua para o mar e por lá ficou.
O seu barco foi encontrado junto à ilha que o viu nascer...
AC

Wednesday, October 04, 2006

OUTONO
Cai a primeira chuva a acompanhar uma trovoada, anunciando que o Estio foi para outras paragens – para o ano talvez volte.
Com o Verão de S. Martinho pode a gente bem!
O ar traz o cheiro agradável e íntimo da terra molhada, que em breve vai iniciar um novo ciclo com a mesma coragem e determinação que cada ano imprime ao fantástico milagre da vida.
O ribombar ensurdecedor de um trovão pressagia que a tempestade está iminente. O cão enfia-se na casota – inquieto – lugar que apenas frequenta quando tem medo.
A água entorna-se dos beirais lavando o pó acumulado nas calçadas. Nas bermas das ruas formam-se pequenos rios de curso imprevisto, à procura de um sítio para desaguar.
Gotas dispersas rolam pelas vidraças das janelas. Olho. A uma delas uma velha e um menino espreitam a chuva como coisa nunca vista. A primeira que ele vê, com certeza. São bem o retrato desta estação – a vida no ocaso traz ao colo a vida no começo.
Deambulo pela cidade gozando o frenesim provocado pela intempérie. A chuva forma uma cortina cerrada que plana sobre o chão, criando a ilusão de que a Praça flutua.
Gente corre daqui para ali, aos solavancos, entre portas e arcadas, evitando a molha, como se a bátega conspurcasse corpos e almas.
À pressa recolhem-se mesas de vendedores ambulantes para salvar a mercadoria. O ardina atira uns plásticos sobre a banca, resguardando as últimas notícias.
Uma criança, com a pressa que a mãe leva, deixa cair um pacote de pipocas acabadinho de comprar. Chora. O berreiro intenso esvai-se, abafado também pelo bater de portadas que se fecham. Os pardais, felizes, agradecem sacudindo a água das abas da farpela. Um gato espreita emboscado na entrada de um pátio, matreiro, a ver se pode tragar algum.
Um pedinte estende a mão encardida à procura de uma moeda, que a actividade não se compadece com as condições atmosféricas.
Os zimbórios da Sé brilham batidos por alguns raios que cruzam o céu. O Sol, a medo, espreita por uma aberta das nuvens e logo aparecem as sete cores do arco íris.
No Rossio nem vivalma, que o sítio é desabrigado. Aqui, em outro tempo, uma carga de água, assim, frustrou o espectáculo de uma queima da malvada inquisição. Por coincidência cruzo-me com um cortejo fúnebre, que a morte escolheu um dia a condizer consigo. Penso que deve ser mais difícil partir num dia de céu limpo.
As últimas andorinhas fazem voos rasantes, acrobáticos, em despedidas até à próxima Primavera. Dentro em pouco estão aí as cegonhas.
Foi-se o mau tempo, inopinadamente, como chegou. O Sol volta a brilhar e com ele a cidade acorda pela segunda vez.
O enxame humano torna a fervilhar pelas vielas, agora sem pressas.
Passa um autocarro apinhado de crianças que regressam do primeiro dia de escola.
Pelo aroma localizo a rua onde o homem das castanhas assadas volta a montar o estaiminé. Remexe o fogareiro de barro que lança castelhanos pelos poros – "são a dez tostões a dúzia e toma lá mais duas porque és bom rapaz".
Não tarda muito, nas tascas faz-se a prova do vinho novo – memórias da adega da casa de meu avô, com grandes talhas, umas de branco, outras de tinto, à medida do paladar dos fregueses.
Um dia destes a natureza veste-se de dourados inigualáveis – riqueza que nos é oferecida sem contrapartidas.
O Outono bate à porta!
AC