Sunday, May 27, 2012
















O massacre de Houla
 Aconteceu sexta feira 25 de Maio de 2012, num dos países mais antigos do mundo: a Síria.
Entre muitos mortos contam-se trinta e duas crianças, provavelmente de uma escola onde aprendiam a arte inofensiva de ler e de brincar.
Esta fotografia, um testemunho arrepiante, é das "menos" chocantes de uma série delas que vi. Agora discutem quem puxou o gatilho!
Nós nada podemos fazer e amanhã as imagens apagam-se..., como sempre.




Encontro em zona de guerra, ou outra história de David e Golias

Ele é real…, o nossos caminhos cruzaram-se numa viagem que me levou a uma cidade síria, algures no centro do país, chamada AL - Houla. O seu nome é Mohamed, descobri o seu par de olhos expressivos entre outros caminhantes vagueando numa estrada de pó com destino incerto. O rapaz aparenta mais idade devido ao seu corpo franzino, tez escura e à desenvoltura com que se atravessa no caminho suado, tentando impingir a mercadoria por uma moeda.  Certifiquei-me que tem dez anos e o mesmo número de elementos da família à sua responsabilidade para alimentar. O pai foi morto por um míssil lançado de um MIG 29, tal e qual como um elefante esmaga uma formiga, sem um ai, com pedaços de corpo irreconhecíveis que puseram perante o seu par de olhos vivos e tristes, para reconhecer. Hesito em continuar a escrever este relato…, ou paro agora, ignorando a bebida amarga que comprei por uma moeda…, ou vou ter que negociar forças para percorrer o trilho extenuante e sem sentido que me levou a Mohamed.
Em Houla a palavra Alá é dita mais de mil vezes por dia pelas bocas esfomeadas de dignidade dos seus habitantes. Mas Deus partiu há muito para o seu refúgio eterno no paraíso, longe das ruas mal cheirosas com casas esventradas, onde agora jazem famílias por completo.
O que faria Deus se continuasse por estas paragens?..., boa pergunta para colocar a quem fez daquela terra a sua, e à qual eu, como homem e ser pensante que sou, não consigo responder, duvidando mesmo que alguém o consiga fazer.
Ao observar a longa fila de trinta crianças mortas por uma bomba que explodiu em cima da sua sala de aulas fico petrificado, olho o rosto das que ainda o têm, lendo em todos a mesma pergunta para a qual, mais que certo, Deus não tem resposta: porque nos mataram quando estávamos apenas a brincar ao nosso jogo favorito?
Mohamed devia estar na escola… mas não estava… porque anda angariando o sustento para a mãe, duas avós e os sete irmãos mais novos,  por caminhos e ruas sinuosas, onde o cheiro a pólvora e a carne queimada, pelas explosões, se entranha teimosamente pelas gargantas. Ele aprendeu o segredo de um chá, não descobri ainda se transmitido pelo pai ou outro parente mais próximo, que alivia essa penosa secura das gargantas, ainda mais tormentosa depois do corte de todo o tipo de abastecimento à cidade…, e faz dele o seu negócio.
Mohamed pisca-me o olho e acena-me com a chaleira do outro lado da estrada. Aproxima-se do carro atravessando a via e encosta-se à janela que está aberta. Apesar de me saber estrangeiro, fala-me com um sorriso aberto de bom vendedor. Não entendo uma palavra de árabe mas gestualmente traduzo que é um copo de chá por uma moeda. Aceno que sim e ele saca do bolso um copo universal, o que me arrepia… seja o que Deus quiser… por estas bandas é mais certo morrer como alvo de qualquer arma mortífera, do que pelo efeito patológico de uma disenteria. Ao longe anunciam-se sirenes em grande azáfama, pouco antes uma explosão tremenda fora a origem de um sopro que me atordoara os tímpanos. Faço-lhe sinal para entrar no carro e sairmos rapidamente daquela zona de perigo. Mohamed aceita a boleia sorridente, leio nos seus olhos que para onde quer que nos desloquemos o perigo irá ou virá ter connosco. Traduzo os seus gestos: «Alá é grande… morte à “shabiha”».
A terra solta constantemente um cheiro intenso a ódio que se entranha nas almas que andam por este mundo, para não mais as largar. Em Houla, onde o caos reina a seu belo prazer, as necessidades mais básicas, quanto vitais, não existem por aqui. Deslocamo-nos na periferia da cidade, onde uma janela com vidros ou uma parede de pé são excepção. Subitamente somos engolidos por um rio humano em clamor. É o funeral dos mártires de um bombardeamento a um bairro do centro da cidade, diz Mohamed. Passam seis caixões por cima do carro, levitando sobre as cabeças da multidão enfurecida. Como surgiu, num ápice, assim desaparece.
Mohamed faz-me sinal para parar… e sairmos rapidamente do carro. Ele ouviu antecipadamente, com certeza por hábito adquirido em muitos e longos meses de guerra, o roncar sibilante de uma patrulha de caças MIG 29. Abrigamo-nos numas ruínas onde  Mohamed entra sem hesitação. A chaleira, apesar da correria, mantém-se firme, sem perda de uma gota do negócio. Alguns segundos depois o ruído ensurdecedor dos aviões e uma explosão avassaladora fazem-me pensar que o tecto do firmamento vai desabar. Uma onda de fumo negro ergue-se da amálgama de ferros retorcidos esculpidos pela precisão de um míssil. Dou graças a Mohamed pela sua perspicácia e ouvido apurado.
É muito arriscado para um jornalista estrangeiro andar por estas bandas. No automóvel, agora transformado num monte de destroços enegrecidos pelo fogo, pereceu material de reportagem valioso. Ao pescoço tenho pendurada uma das máquinas fotográficas que, por sorte, arrastei comigo. Mohamed faz-me perceber com um gesto do polegar esquerdo para cima que é muito fixe a Olimpus estar intacta. Dá-me espaço e pousa para um disparo com a chaleira em grande plano… e o seu sorriso…, o seu sorriso inocente atirado para o campo de batalha.
Sigo o pequeno herói chefe de família por um labirinto de ruelas atafulhadas de destroços de casas, ainda há bem pouco tempo habitadas, mas às quais foi lançado o anátema de albergarem terroristas. Cruzamo-nos com mulheres que choram a destruição de todos os seus haveres. Procuram nos escombros calcinados algum objecto mais valioso…, uma recordação de família. “Indiferente” ao sofrimento dos seus compatriotas, Mohamed a todos oferece chá com um sorriso nos lábios, a troco de uma moeda… obviamente. Faz-me compreender que à noite, quando chegar a casa, ou ao que resta dela, quer ter o suficiente para alimentar a família. Vou batendo fotografias, como esta que acabo de fixar, da recolha dos cadáveres de uma mãe e dos seus dois filhos. Mohamed salta de espaço em espaço, sobre todas as desgraças que se atravessam no caminho…, e eu dou comigo a pensar que não deve ser muito diferente viver no “inferno”.
Vemos uma bola de fogo ao longe, seguida de um estampido violento, que nos quebra por segundos a audição. Uma nuvem de fumo negro desenha um cogumelo…, Mohamed fica agitado, gesticula e acelera o passo, a ponto que tenho dificuldade em segui-lo. Fico a saber que o fogo atingiu a zona da sua casa. Ele teme pela mãe e pelos irmãos.
Felizmente, hoje, todos estão bem.
Mohamed dá-me autorização para fotografar a família reunida…, uma recordação deste nosso breve encontro em zona de guerra.

AC