Friday, June 29, 2018


Um médico mesmo a calhar...

 

Certo dia que não consigo situar bem no tempo, mas já de calor e mistura de odores denunciando ser Primavera, regressava à aldeia vindo do monte dos Cardeais, onde tinha ido consultar um doente, quando me surgiu aquele homem gesticulando, à frente do automóvel, com ar de grande aflição. Os travões da minha velha “arrastadeira” chiaram também aflitivamente, conseguindo estancar a viatura quase a roçar o desconhecido. 
Saí do carro irritado e praguejando mas logo me contive ao ver o homem de mãos postas em preces de auxílio por todas as alminhas da minha família.
Ainda de pé atrás e máscara de mal disposto, indaguei se tinha combinado aposta de ficar vivo depois do meu carro lhe passar por cima.
Parecendo não me ter ouvido, ou pelo menos não ser importante dar-me resposta, apontou-me a berma da estrada onde se encontrava uma carroça e uma velha burra, que pastava por perto, fazendo-me saber que ali se encontrava sua mulher em trabalhos de dar à luz o seu quinto filho.
«O senhor tem que me valer – repetia-me insistentemente, procurando quebrar o meu pasmo pelo inesperado - na aldeia há um médico… e no seu automóvel chegamos a tempo do doutor a ajudar a parir.»
Jovem licenciado em medicina, saído da faculdade uns meses antes, viera iniciar-me na profissão substituindo o velho colega do partido médico local, gravemente doente.
Só, com meia dúzia de livros de clínica e uma caixa de ferros polivalente, tive que me socorrer de tudo o que aprendera, e do que não aprendera, para tratar aquela boa gente isolada por muitos quilómetros de caminhos velhos.
No meu pequeno consultório à luz do candeeiro a petróleo, em casa dos doentes, ou em montes afastados, lá fui tratando febres e outras maleitas, drenando abcessos, suturando feridas, extraindo algum queixal ou ajeitando um ou outro osso fraturado…
Mas partos…, felizmente, ninguém nas redondezas, até à data, me chamara para assistir, a um que fosse.
O que muito me convinha, diga-se em abono da verdade, pois era assunto médico que, embora com razoável preparação teórica, me metia respeito e receio de praticar naqueles ermos.
Safara-me até então a velha Maria Antónia, diplomada por anos de experiência a atender a partos na aldeia e preferida pelas mulheres, em tão melindrosa ocasião.
Mas naquele momento, na berma de uma estrada, com uma criança na hora de vir a este mundo no interior de uma carroça, não havia Maria Antónia que me valesse.
Aturdido com a surpresa do “acontecimento campestre insólito”, ouvi gemidos vindos do interior da carripana.
Fiquei nervoso mas procurei que o homem  não se apercebesse.
Ele mais parecia ser quem estava prestes a parir!
Subitamente, enquanto olhávamos especados um para o outro, em “longa” indecisão do que fazer, fomos acionados por um grito lancinante da mulher…, logo seguido de um choro melodioso de bebé.
Despertos daquela meia hipnose e atrapalhação em que tínhamos ficado, corremos em direção à carroça, estimulados que ficámos pelos sons anunciadores do que tinha acontecido.Entre as pernas da mulher estava um lindo rapazinho que não esperara que o médico o ajudasse a nascer, quem sabe adivinhando a falta de experiência do clínico em matéria de partos.
O homem sorriu em agradecimentos e despachou-me com satisfação: «a sua companhia foi uma benção…, atalhou-me o nervoso miudinho que a gente sente nestas alturas».
Quando reiniciei a marcha em direção à povoação, sorrateiramente incógnito, ainda o ouvi gritar-me com timbre de grande contentamento: «o doutor nem cá fez falta!».

AC

Sunday, June 24, 2018


Manuel Rita, aliás Chã Frio

 

Foi internado  em 18 de Dezembro de 2010, por coincidência no dia da festa de Natal, onde entrou diretamente. Eu estava do outro lado da sala a observar a cena da receção ao novo residente. Ele sempre fora magro mas vinha por metade.  A assistente social cumprimentava  efusivamente a sua chegada: “Sr. Rita…, isto é que é sorte…, uma festa para o receber”. Ele, surdo que nem uma porta, assegura-lhe: “se tivesse força dava-te uns beijinhos… querida”. Toda a gente ri…, ou sorri…, com vontade. Olham-me inquisitorialmente, pois sabem-me seu conterrâneo. E eu respondo: é mesmo assim…, o Chã Frio atira-se de cabeça…, para que não haja dúvida.
Quando conversávamos o meu pai era pergunta habitual…, que era mais ou menos da sua idade…, juntos na escola da D. Alice, professora de modo rude e mão leve.
Por circunstâncias da vida, nunca tínhamos estado tão perto um do outro. Tinha sim conhecimento das suas aventuras de vida enquanto elemento da banda de Alandroal, onde tocava clarinete…, e também o seu entretém de fotógrafo “paparazzi” local…, amante de beber uns copos e de percorrer quilómetros de alcatrão numa bicicleta com espelho retrovisor à maneira.
Contaram-me que numa época de decadência da Banda, onde tocava clarinete, houve um desentendimento, do qual se desconhece a origem. E numa festividade importante a Banda não saiu a tocar. Todos menos o Chã Frio que saiu fardado para o adro da igreja, onde tocou até ao pôr do sol. Reza a memória do tempo que não passou fome… e muito menos sede. Pudera… com três tabernas ali à mão… e à boca.
Até há pouco tempo desconhecia a origem da alcunha do Manuel Rita, “estória” que me foi contada pelo Capitão José Luís, tio do Francisco Manuel, num dia em que foi visitá-lo.
Há muitos anos, por ocasião do Carnaval, veio ao Alandroal um grupo de rapaziada de Pardais…, ou de Bencatel…, brincar ao Entrudo. O que era habitual naqueles tempos…, livres de redes sociais… mas em que o povo se divertia à grande pelas terras vizinhas. O grupo era dirigido por um “mestre de cerimónia” que controlava os excessos, gritando para os mais exaltados:
“atenção… atenção… …pouco chinfrim!!!”.
O Manuel Rita, que desde criança era surdo, no chinfrim percebia chã frio… …e vá de repetir chã frio…, chã frio…

 …assim ficou Chã Frio.

AC