Sunday, September 24, 2006



Jack - o amigo certo...

PELO RABO (NÃO) SE CONHECE UM CÃO.

Fim de tarde de Agosto sufocante. Corre uma leve brisa que empresta um colorido alternado às folhas de algumas árvores e refresca um pouco a alma dos caminhantes. Ao longe, o calor que emana da terra lança aleatoriamente nuvens de poeira no ar.
Passeio com o meu cachorro Jack por uma azinhaga dos arredores da cidade, que do local tem vista magnífica, ele a alegria em cão estampada no focinho e nas patas, que se desdobram em intensas correrias para calejar os músculos.
Aproveito também para desentorpecer as pernas ao mesmo tempo que nos vamos familiarizando com a linguagem um do outro – o que nos torna cada dia mais íntimos – indiferentes a algumas variantes genéticas que o determinaram a ele cão e a mim humano.
O Jack apresentou-se pela mão da minha filha, com uns imberbes dez dias e ainda de olhos fechados.
A pequena fechou-se no quarto na dúvida da minha reacção, pois sabia a carga de trabalhos que trouxera para casa.
Íamos mudar-nos para uma habitação com quintal e um cão seria bem vindo, para guardar claro está, a troco de um prato de sopas diário e água à descrição.
Puro engano. O Jack chegou em estado de ser guardado em confortável alcofinha e ser alimentado a biberão com leite especial para cachorrinhos, por vezes a altas horas da noite, ao sabor do seu relógio biológico.
Hoje que já nos vamos percebendo, “ladrou-me que até acha piada ter sido criado por um humano”. Coitado do cachorro, quando abriu os olhos os primeiros contornos deste mundo que vislumbrou foram o meu nariz e o biberão por onde o alimentava.
Um vizinho que nos viu chegar engraçou imediatamente com o pequeno Jack. Quando há dias nos cumprimentámos, já idos quatro meses de vizinhança, perguntou-me se o cão grande não fazia mal ao cão pequeno?! É que, de repente, o Jack cresceu vertiginosamente.
Uma das curiosidades da família tem sido aguardar o dia em que o Jack comece a fazer “chi chi” à cão adulto – rimo-nos quando o faz como se fosse uma cadela, e ele fica com focinho de não achar piada.
Observei-o há dias, precisamente quando fazia seis meses, pela primeira vez a exercitar com muita satisfação a actividade fisiológica de urinar com a perna alçada na minha canela.
O “safado mijou-me” para cima do sapato e depois olhou caninamente, deixando-me perceber a intenção: “és o maior dono do mundo e como prova da minha grande amizade ofereço-te a primeira mijadela que faço de perna alçada”.
Num desses passeios fora de horas, pela azinhaga, cruzámo-nos com um cigano que se mostrou muito interessado no Jack.
O cão fixou-o de pálpebras semicerradas e, pela primeira vez, rosnou. Depois de um leve puxão na trela sentou-se encostado à minha perna.
O cigano – a curiosidade em pessoa – logo inquiriu: «atã o canito é sê senhori?»
-Ó amigo cigano, que não sei o seu nome, quer ver que é seu? -contestei-lhe com à vontade e humor; ando a passear com um cão que tem na coleira uma chapa de registo, que trago preso por uma trela, e você pergunta se é meu! Homessa!
O Jack rosnou pela segunda vez, mais forte, mostrando que algo não lhe estava a agradar. Fiz sinal para que se acalmasse.
O cigano – continuava incógnito – apressou-se em mil desculpas: «nã lev´a mal senhori; -é qu’ando à procura dum canito que me fugiu, même igual a essi; nunca vi même nada tã iguali; se calhar sã gémos e a gente nã sabi!»
-Olhe, sinto muito que tenha perdido o seu cão. Eu se perdesse este também teria grande desgosto..., disse-lhe em tom consolador e resignado; agora essa deles serem assim tão iguais, e gémeos, não foi o que disse?; acho que está a exagerar, ou a ver mal! -rematei já meio irritado com a conversa, ou melhor, com a lata do cigano – ainda incógnito.
«Ai senhôri, nã pense mal de mim por amô Dês, é qu’eles sã même igualitos, igualitos» -insistia.
-Vejo que você está mesmo convencido e irá ficar na dúvida, -condescendi em tom disfarsadamente irónico; para que o amigo cigano – sempre incógnito – se convença que este não é o seu cão...; aqui o Jack deu um valente esticão e ladrou perigosamente na sua direcção, fazendo o homem dar um salto acrobático à retaguarda; logo de seguida colou-se de novo à minha perna, com ar seguro.
Continuei: para que desfaça a dúvida que lhe surgiu sobre o cão, que diz ser igualzinho ao seu, vamos fazer uma experiência, que com certeza o convencerá; tão simples quanto isto…, vou soltá-lo e cada um de nós vai para seu lado da azinhaga; a quem o cão acompanhar…, esse…, será o verdadeiro dono...; agora a ironia era descarada!
O cigano – nunca lhe soube o nome – apressou-se a exclamar com tónica de grande convencimento: «nã precisa soltari o animali, nã senhori, même agora vi qu’ este nã é o mê canito; atã se logo tenho olhado pr’a eli de trasêra…, logo tinha visto que nã er’ó mê canito; ond’ elis sã defrentes é no rabo, qu’ este tem um rabo maiori.»
O cigano, num ápice, desapareceu sem deixar rasto.
Dono e cachorro continuaram a caminhada, o Jack abanando aquele belo rabo que já o distingue de qualquer outro cão.

AC







Um Conto Medieval – Enfrentamento em Ouguela


Corria o ano de 1475 quando se deu o acontecimento que me disponho relatar. Pretendo que através do meu punho, embora com imprecisões de linguagem e de gramática, pois não sou um erudito, fique, para conhecimento dos que hão-de vir, este feito extraordinário que todos nós habitantes da vila de Ouguela presenciámos naquela Primavera de 1475. Situem-se no tempo e local onde agora me encontro.
Ouguela é uma bela e impenetrável fortaleza, no cimo de um morro isolado, sentinela alerta ao outro lado da fronteira. Que ali começa Castela !
Vai para dois séculos que passou a terra portuguesa, pelo tratado de Alcanizes. Reinava o nosso rei D. Diniz. E parece que devido aos bons ofícios de sua mulher, a Rainha Santa Isabel.
Mas nem sempre os assuntos entre os reinos de Portugal e de Castela se resolveram por tratados. Não vai longe a terrível guerra do final dos anos trezentos em que, com muito sofrimento e perda de vidas humanas, tivemos que defender o nosso território e identidade nacionais. Oiço o eco das carriagens em movimento, daquela imensa onda de castelhanos arrasando aldeias e lugarejos, tudo destruindo. E também o som ensurdecedor dos trons, armas diabólicas que podem matar, à distância, vários homens ao mesmo tempo.
E tudo isto eu não presenciei mas ouvi contar a meu avô que esteve na batalha dos Atoleiros, com a tropa do então jovem D. Nuno Álvares Pereira.
Os dois reinos voltam a não se entender e a causa tem ligeiras semelhanças com a que deu origem à desavença de há cem anos. Uma questão provocada, agora, pela sucessão ao trono de Castela.
O rei de Castela e Leão Enrique IV, alcunhado de “El Impotente”, casou em segundas núpcias com a irmã mais nova de D. Afonso V, D. Joana. Deste casamento nasce a infanta também de nome Joana, que dizem as más línguas ser filha de D. Beltran de la Cueva, Duque de Alburquerque e valido do rei. Verdade, ou não, a princesa é conhecida em toda a Castela por Joana a Beltraneja.
Enrique IV e sua mulher por mais de uma vez declararam a legitimidade da filha, e no seu testamento o rei castelhano, consta-se, entrega ao cunhado a protecção da sua herdeira, com quem o convida a casar, assim como a defesa e governo de seus reinos.
No entanto, a irmã de Enrique IV, Isabel, filha como ele de D. João II de Castela, mas sendo a mãe a portuguesa, também de nome Isabel, filha do Infante D. João de Portugal, a quem corre nas veias sangue de Nuno Álvares Pereira, é uma mulher inteligentíssima e decidida.
Sem autorização e conhecimento do irmão casa com o príncipe aragonês D. Fernando.
E quando em Dezembro de 1474 morre Enrique IV é aclamada rainha na maior parte do reino de Castela.
A D. Isabel e a D. Fernando chamam-lhe hoje os reis católicos de Hespanha, pois são pessoas muito dedicadas à religião.
Dizem muitos judeus e outros infiéis que por aqui passam fugidos, que muitos outros têm ardido em grandes fogueiras à ordem de um tribunal a que chamam da Santa Inquisição, pedido por estes reis ao Papa para combater as heresias que minam o reino.
Mas perante o desenrolar de acontecimentos provocados pela morte de Enrique IV, o seu cunhado D. Afonso V decide intervir na sucessão do reino vizinho, em defesa de sua sobrinha e prometida, D. Joana, que se vê também aclamada em muitas praças ao longo da fronteira com Portugal.
Assim principia uma guerra confusa que durará quatro anos, de 1475 a 1479, em que se deu a célebre batalha de Touro, na qual o porta-bandeira português, chamado Duarte de Almeida, decepado gravemente das mãos a segura com os dentes e o que lhe resta dos membros, levantando o ânimo das nossas tropas.
De tudo o que tenho ouvido contar, ainda não percebi quem saiu vitorioso desta batalha, mas a guerra, políticamente, foi-nos desfavorável, pois no trono de Castela está sentada D. Isabel.
Ouguela, como praça portuguesa que é, alinha pelo partido da sobrinha do rei de Portugal, D. Joana, a Excelente Senhora.
Além da batalha de Touro os recontros resumiram-se a escaramuças fronteiriças, embora algumas delas tenham ficado célebres por factos como o que passo imediatamente a relatar.
Voltemos, então, ao ano de 1475.
***
Vai uma Primavera escaldante este ano. Não chove gota de água há meses, que me lembre desde Novembro passado, e os últimos Invernos passaram despercebidos. Fontes e poços começam a fraquejar. Felizmente a cisterna do terreiro do castelo tem bastante água. O nosso alcaide, João da Silva, mandou racioná-la. Teme, concerteza, que um assédio prolongado nos deixe sem água, o que seria desastroso.
Este alcaide é um grande capitão. Por isso o rei o nomeou, também, camareiro-mor do príncipe D. João. É um homem generoso, justo e avisado.
Desde o início do mês de Abril obriga todo o povo das cercanias a recolher-se no interior da muralha a partir do pôr do sol. Receia um ataque vindo de Alburquerque, praça castelhana postada do outro lado da fronteira cerca de duas léguas – em dias de boa vista parece estar mais perto – e que tem forte guarnição militar.
Acima de tudo João da Silva quer ter em guarda e proteger a população que nada tem a ver com esta guerra.
Ouvi-o, há dias, dizer para o Prior da Igreja de N.ª S.ª da Graça e para o Capitão da guarda: «não quero que esta gente seja molestada por querelas que lhe não dizem respeito, nem entende. Nós, soldados, estamos aqui para obedecer e defender o nosso rei e senhor D. Afonso V. Essa é a nossa obrigação de soldados e tudo faremos para que assim seja».
Retorquiu-lhe o Prior: «Deus Nosso Senhor vai pôr cobro rápidamente a esta contenda e se isso não acontecer será, certamente, para sua maior glória e...»
Interrompeu-lhe o discurso o alcaide e replicou: «nunca perceberei como é que uma guerra pode servir para glória de alguém, ou do que quer que seja!»
É assim João da Silva, um homem directo, determinado, sem papas na língua. E tinha razão nas suas conjecturas em relação a Alburquerque.
Tem esta vila também valente alcaide: Juan Fernandez Galindo, 3.º Mestre de Alcântara, homem experimentado na arte militar, rijo como o metal da armadura que enverga para combater mas sempre pronto a auxiliar quem lhe bate à porta.
Em Alburquerque ninguém conhece o rosto da fome e não há viajante que fique a dormir debaixo das estrêlas. A todos acolhe e enche o estômago.
E também não há malfeitor que se aventure por aquelas bandas, pois arrisca-se a, num abrir e fechar de olhos, dançar morto na ponta de uma corda, suspenso da arrepiante altura da torre de menagem.

***
Juan Fernandez Galindo mandara aprontar para combate a tropa sediada em Alburquerque mas nem ao seu Capitão da guarda dera conta das suas intenções.
O dia amanhece solarengo naquele 6 de Maio de 1475. Vai fazer muito calor. Quando os primeiros raios de sol chegam à praça de armas de Alburquerque um pequeno exército está pronto para qualquer eventualidade, esperando que o seu comandante apareça à porta principal da alcáçova.
Este é um dia especial para o alcaide Galindo. O seu filho mais novo, Pedro Fernandez Galindo, com apenas catorze anos de idade, feitos naquele dia, e contra a vontade de sua mãe, está entre os cavaleiros que o vão acompanhar na expedição a Ouguela.
Esta sortida é outro motivo de orgulho que sente naquela hora. Nunca se tendo encontrado frente a frente com João da Silva, conhece bem o alcaide de Ouguela. Por várias vezes o avistou do outro lado da raia, junto ao rio Xévora, em episódios de caça ao javali.
Sabe da valentia e nobreza do seu adversário que não é homem de vergar.
É neste estado de espírito que Juan Fernadez Galindo se dirige aos seus homens de armas:
«El rey de Portugal ha invadido nuestros Reinos de Castilla y Leon para quitar el trono a nuestra reyna y señora Doña Isabel y poner en su lugar a su sobrina Doña Juana.
La mayoría de las plazas del Reino, al igual que lo hicimos nosotros, después de la muerte del rey Enrique, han proclamado inmediatamente a Doña Isabel y a su marido, Don Fernando de Aragón, como sus legítimos Reyes. He decidido que nos vamos hoy a Ouguela para delimitar bien la soberanía de Castilla y devolver esa ciudad a nuestro Reino. Esa es nuestra misión. Que nos guíe la Virgen y su hijo Cristo Rey»
Em Ouguela essa manhã de 3ª feira, 6 de Maio de 1475, também acorda sorridente e adivinhando um dia quente.
Abre-se a porta de armas ainda de madrugada, para deixar sair um correio a caminho de Évora, onde se encontra o príncipe D. João, relatando-lhe João da Silva as suas últimas suspeitas sobre movimentações de tropas castelhanas ao longo desta parte da fronteira.
Alguns homens de sua confiança, colocados estratégicamente em terra castelhana, informam-no com rapidez do que por ali se vai passando.
Ainda há poucos dias teve notícias de D. Afonso V e sua hoste já dentro de Castela, a caminho de Plasencia, ao encontro de sua sobrinha D. Joana.
E soube, também, que o rei português não tem sido importunado na sua marcha, a não ser por alguns provocadores que quando a tropa portuguesa lhes deita a mão ficam a baloiçar na árvore mais próxima.
Nessa manhã, igual a tantas outras, o alcaide encontra-se bem cedo na Igreja Paroquial a ouvir missa. O silêncio habitual na casa de Deus é cortado, súbitamente, por passos apressados que enchem os ouvidos dos devotos e denunciam preocupação e alarme.
João da Silva sabe imediatamente que qualquer coisa de anormal acontece e ao virar-se na direcção do som tem a seu lado o Capitão da guarda Álvaro Pais.
-Tendes, com certeza, Álvaro Pais grave motivo para interromper as minhas orações e até adivinho o que me vindes dizer, atirou o alcaide ao seu homem!
A boca de Álvaro Pais, presa de estupefacção, não articula palavra e o alcaide adianta: -temos visitantes?
-É isso mesmo senhor, ressoa a voz grave do Capitão por todo o Templo, abafando as preces do Prior e fiéis. D. Juan Galindo encontra-se a trote à frente dos seus homens de armas e dirigem-se para aqui.
Mal o dia começou a clarear, a sentinela da torre maior viu grande poeirada para os lados de Alburquerque. Como a terra anda cheia de pó e há vento, pensou que era um daqueles remoinhos habituais nesta altura do ano. E descansou. Pouco tempo depois, ao enxergar outra vez na mesma direcção, estranhou continuar no ar aquela mancha de poeira. Foi então que percebeu a sua causa!
Agora vêem-se bem. São cerca de cem cavaleiros e quinhentos peões, comandados pelo próprio D. Galindo. Vêm armados até aos dentes, Senhor!
De um pulo o alcaide de Ouguela está fora da Igreja a subir as escadas da torre de menagem. E não fica com dúvidas sobre as intenções do grupo.
***
À nuvem de pó, que denuncia os castelhanos e é agora uma enorme cortina acastanhada que se vai refazendo, junta-se, passado algum tempo, a onda sonora do movimento da coluna: mistura de vozes, relinchares, trotear, passos apressados e sons metálicos.
Já encandeiam as luzes de mil sóis reflectidos por elmos e escudos. E tudo isto agora é nítido, provocando dentro do peito de quem espera um eco compassado ao ritmo da aproximação.
Em Ouguela fecha-se a porta de armas e há grande azáfama dentro muros. Fazem-se os últimos preparativos para receber os de Alburquerque, já que o plano de defesa da vila há muito está ensaiado pelo seu comandante.
João da Silva, trajado para combate, volta à torre de menagem e não tira os olhos do cavaleiro que encabeça a hoste: Juan Galindo.
Sabe de cor o português a que vem o castelhano. Adivinha-lhe o estado de alma, o olhar desafiante, a tensão de cada músculo do seu corpo, o desejo ardente de combate...
O aspecto imponente daquele homem condiz com tudo o que dele lhe contam. Vai, por certo, aceitar o seu desafio!
O comandante castelhano sente-se, por seu lado, observado e repara naquela silhueta imóvel, postada no alto da torre principal da fortaleza de Ouguela. Ali reconhece o mesmo homem que algumas vezes avistara junto à linha fronteiriça, até onde, por vezes, vem correr a caça.
Já muito perto do Castelo fica pasmado D. Galindo com um acenar amigável do seu opositor. E mais ainda quando percebe que o mesmo lhe indica que irá sair, sem escolta, ao seu encontro, para com ele chegar à fala.
«O português é homem valente, não há dúvida. Ele e os seus homens estão ali para assaltar Ouguela, pelo que esperava tudo menos aquela recepção».
E fica curioso, cogitando sobre as intenções de João da Silva. «Vindo sem escolta, para palestrar, é porque se dispõe a propôr-lhe qualquer acordo. E sabe que ele é homem para ouvir. O plano do cerco ao castelo está arquitectado e pode ser executado a qualquer momento, pelo que não há pressas. Deve ouvir o que o alcaide português tem para dizer».
D. Galindo faz sinal ao seu Capitão da guarda para que mande parar a tropa.
Homens e animais estão sequiosos, cobertos de pó, recebendo com agrado a ordem de suspender a marcha.
Depois, ele próprio, dá instruções muito precisas: «Voy al encuentro del comandante portugués que desea encontrarse conmigo a solas. Hasta que yo vuelva mantendréis esta posición y bajo ninguna circunstancia la abandonaréis.»
***
Chega o castelhano junto ao morro da vila no preciso momento em que o português sai fora muros. Estão desarmados os dois homens. As armas por agora não vão ser necessárias.
Soldados e população apinham-se entre ameias para assistir ao encontro que também é seguido com atenção pelos de Alburquerque.
Estancam os dois cavaleiros a menos de dez metros um do outro e olham-se com respeito. Parece que ambos aprovam o inimigo que têm pela frente.
Juan Galindo quebra o silêncio: «Señor Don João da Silva, mis intenciones son claras. No he entrado en tierras portuguesas para venir a pasear. Estoy aquí por expreso deseo de mí reina y señora, Doña Isabel, para tomar a ciudad de Ouguela y devoverla a nuestro reino de Castilla. Sin embargo he recibido vuestro ofrecimiento y, antes de ordenar a mis hombres que ataquen el castillo, quiero oír vuestras palabras».
João da Silva ouviu impassível, o comandante castelhano, sem deixar escapar do seu rosto qualquer emoção. Depois, com voz calma e pausada respondeu: «D. Juan Fernandez Galindo, pois sei muito bem a razão da vossa vinda. Mas, aviso-vos, estais aqui em vão!
Não conseguireis entrar em Ouguela para cumprir o desejo de vossa rainha, a Senhora D. Isabel. A isso me vou opôr!
Estamos fornecidos de água e mantimentos com fartura, pelo que vos podemos massacrar ali de cima por longo tempo.
Mas sei que não sois homem para dar meia volta e regressar a Alburquerque.
Morrerá gente vossa e minha sem proveito para ningém! E eu tenho dentro da muralha gente simples, que nada tem a ver com as quezílias entre o meu rei e a vossa senhora Dona Isabel.
Por isso vos venho desafiar!
Proponho-vos um combate entre nós que ditará a sorte de Ouguela. Combateremos os dois com as nossas espadas até um de nós morrer. Os vossos soldados e os meus, assim como o povo de Ouguela, serão testemunhas do que acontecer».
D. Galindo percebe a determinação do português. E concorda, para si, que é empreitada difícil assaltar o castelo de Ouguela. A proposta de João da Silva é prática e revela, sobretudo, grande nobreza de carácter. Que tudo se decida com a morte de um deles.
«Haré mías vuestas palabras», respondeu Don Galindo. «Y si Dios quiere llamarme hoy a su presencia, tendré mucha honra y orgullo de morir en vuestras manos».
***
Naquele fim de tarde de seis de Maio de 1475 encomendam-se os dois capitães a Deus na Igreja de N.ª S.ª da Graça. Cada um reza por seus sentimentos mais íntimos, oferecendo o sacrifício de sua vida por aquela nobre causa que concordam defender.
Terminada a oração abraçam-se os dois cavaleiros, mais parecendo irmãos de peito que inimigos, pedindo perdão um ao outro, como o algoz à sua vítima.
Álvaro Pais e Miguel Escobar, lugares-tenentes dos alcaides, ainda meio perturbados com o rumo dos acontecimentos, fazem os últimos preparativos para a liça. Escolhem um terreiro apropriado, com bastante espaço para dispôr tropas e gente curiosa.
Estão prontos para combater os dois homens. Juan Galindo beija o filho Pedro, balbuciando qualquer coisa que ninguém ouve mas todos pressentem o que lhe terá segredado.
Este combate decorre em silêncio! Talvez a léguas se oiça o som das espadas cruzando ares, cintilando uma sobre a outra.
Arremetem uma e outra vez os dois cavaleiros, ferozmente, defendendo cada escudo as tremendas espadeiradas desferidas. O castelhano mete a espada na axila direita do português, que a tinha a descoberto para infringir mais um ataque. Dobra-se de dor João da Silva mas logo recupera forças e atira potente estocada a D. Galindo que é atingido, gravemente, no baixo ventre.
Golpe atrás golpe ferem-se, mortalmente, João da Silva Português e Galindo Castelhano. Este está inerte, abraçando o pescoço da montada não recobra fôlego. João da Silva apeia-se, vacilando, vai com muito custo até junto do seu companheiro de lide e, levantando-lhe a viseira, compreende que o duelo está terminado. Imediatamente cai exausto, inanimado.
A hoste invasora regressa a Alburquerque, agora em cortejo fúnebre, transportando o cadáver do 3.º Mestre de Alcântara.
Em Ouguela, vinte e oito dias depois, morre o nobre alcaide João da Silva devido aos graves ferimentos recebidos da espada de seu valente adversário.
A vila continua portuguesa.
AC

Wednesday, September 20, 2006




Anta-Capela de S. Brissos
Évora











Dolmens e Antas
Os monumentos megalíticos, de que os dolmens e antas são os mais representativos, encontram-se espalhados por todo o Alentejo. Testemunhos de culto funerário ancestral, muitos desses monumentos não estão sinalizados, ou ainda nem sequer foi feito o seu levantamento topográfico, sofrendo lentamente a destruição natural, ou da mão humana e outras. Aqui foi uma azinheira que irrompeu, sem cerimónia, pela câmara mortuária, que praticamente não existe, mas ainda se vê bem o alinhamento dos esteios do corredor de entrada.
AC
Uma manhã cheia de esperança...
(a propósito dos presságios astrais)

Alvorecer de 11 de Agosto de 1999. São 7:45 quando olho para o relógio que inadvertidamente deixo cair no chão, de tal modo ainda estou ensonado. Às apalpadelas tento apanhar, com gestos de mão descoordenados, o tempo que se esquiva debaixo da mesa de cabeceira. Viro-me para o outro lado, irritado, disposto a voltar a dormir mas num instante estou fora da cama bem acordado, concentrando todas as energias no fenómeno que a esta hora deve ocupar milhões de mentes como a minha – hoje é o dia do último eclipse de sol do milénio.
Percorro a casa numa volta rápida. Detenho-me no quarto de Anaoi que tem a porta escancarada e as luzes acesas. Dorme com os óculos postos, sem livro por perto, o que me leva a suspeitar que algo se passou durante a noite.
Lá fora o cão capta-me os movimentos e dá-me os bons dias à porta da cozinha, como é seu hábito – um ressoar intenso que me faz lembrar o som expelido pelas narinas de um cavalo espantado. Não resisto a espreitá-lo por uma das janelas e registar o ar alegre e tranquilo que me são transmitidos pelo focinho e pelo abanar do rabo. Ele também não resiste e empina-se subitamente no parapeito, ao mesmo tempo que me prega uma lambidela descarada. Pela descontracção do animal concluo que naquela magnífica cabeça de rafeiro não há qualquer pressentimento de perigo – tenho ouvido, por aí, que os animais sentem antecipadamente a ocorrência dos fenómenos naturais de maior dimensão.
Abro as portadas da sala que é invadida por jorros de luz. Oiço alguém dizer que o “Clipse” já começou. Imagino que dentro de pouco mais de duas horas será escuro, um entardecer adiantado. Pego num jornal da semana passada e fico satisfeito por não ter conseguido um par de óculos de observação que procurei por tudo quanto era sítio. O eclipse não vai ser total por estas bandas, há notícia de óculos falsificados no mercado, o mais avisado é ver pela televisão que transmite em directo – como se de um jogo de futebol se tratasse e, ainda por cima, com relatos de vários pontos do país.
O CIS ( Canal Informativo Satélite ) abre com o acontecimento astronómico em exclusivo. O “Show Man” apresenta uma mesa quase redonda – ele, “Show Man”, na interface do programa onde mais parece um participante do jogo do toca e foge, um Padre porque os padres opinam sobre tudo e uma Astróloga que não cheguei a perceber em que se baseia para nos vir impingir o começo de uma «nova era» de prosperidade para todos nós, quando o que todas as televisões nos mostram nos telejornais é meio mundo à cacetada com a outra metade.
Desculpem, mandei o eclipse e a mesa quase redonda para “aquela parte” e deixei-me dormir a meditar na passagem do último cometa, acontecimento que foi bem mais divertido, não necessitando sequer de óculos especiais para ser observado.
Manhã adiantada sou retirado do sonho cósmico – viajando na cauda do cometa – pela voz aflita de Anaoi que está indisposta e passou mal a noite com problemas gástricos sem causa aparente. Pergunta-me se não vou ver o eclipse... ...e depois se acredito que o mundo vai acabar hoje?
Olho para a rua ao mesmo tempo que o show man anuncia freneticamente que se atingiu o “pico máximo”. Este eclipse, pelo menos por aqui, é uma desilusão total – lá fora está um dia de sol radioso.
Risonho de mais para que o mundo acabe hoje, sem mais nem menos...
Associo a questão colocada por Anaoi e compreendo de imediato a má disposição nocturna. Finjo não perceber as angústias existenciais noctívagas da pequena, penso abordar o assunto mais para o fim do dia, o que me dá uma margem de persuasão mais convincente. A táctica não resulta. Também para a minha filha o progenitor está na posse do conhecimento universal.
E ela volta à carga, desta vez com pontualidade: –ó pai se o mundo acabar hoje a que horas é que isso vai acontecer? Não esperando um segundo pela minha resposta esclarece-me o motivo da sua preocupação: –a Sara diz que isso vai acontecer quando a Lua passar mesmo em frente ao Sol... ...ela vai cair em cima da Terra. O tom do discurso transmite-me que Anaoi atravessa um estado de ansiedade marcada que é necessário contrariar de imediato.
Pela segunda vez sou ultrapassado a emitir opinião: –na Bíblia vem que é no ano 2000 (dizem os catastrofistas que hoje é o dia do fim do mundo referido na Bíblia)!
Adivinhando-lhe o pensamento, assim que ela iniciou a frase fiquei com a resposta engatilhada na ponta da língua: –estás a ver filha, as coisas não acontecem precisamente como estão escritas... ...a Bíblia é um livro muito rico em afirmações mas muito pobre em explicações... ...até porque ainda não chegámos ao ano 2000.
Sabes, as datas quando se trata de escritos antigos são sempre difíceis de interpretar, quer dizer, de sabermos precisamente o tempo a que se referem... ...porque então o calendário não era igual ao de hoje.
Não deves preocupar-te, a nossa Terra, com mais ou menos eclipse, vai continuar a girar à volta do Sol...
Anaoi voltou a sorrir, como sempre, e anda agora aos pulos no pátio, em grande retoiça com o cão.
Fico a fazer contas – se tudo correr bem, quando o Cometa Halley voltar terei a idade de 114 anos e no próximo eclipse total do Sol que espero ver com uns óculos decentes, na Cornualha ou em Budapeste, estarei com 132.
Bonita idade para assistir a um novo fim do mundo...

AC

Tuesday, September 19, 2006

Os Cometas

(do grego Kométes, «astro cabeludo»)


Os Cometas são corpos celestes de reduzidas dimensões, se comparados com os Planetas. As suas órbitas podem ser parabólicas mas são a maior parte das vezes elípticas, em torno do Sol. Nunca foram observadas órbitas hiperbólicas[1]. O ponto da órbita em que o cometa atinge a menor distância em relação ao Sol chama-se periélio, sendo o inverso o afélio.
Os Cometas podem ser classificados quanto ao seu período: de curto período (como é o caso do Cometa Encke, com um período de 3,3 anos), de médio e de longo período (como o Hale-Bopp[2], que fez a sua aparição entre a Primavera de 1996 e a Primavera de 1997, com um período de 2400 anos)
A sua massa pode variar entre algumas dezenas e alguns milhares de quilogramas. São constituídos por um Núcleo – rochoso, envolvido por camadas de gelo e poeiras. Em volta do núcleo têm uma camada superficial gasosa – a Cabeleira – e apresentam também uma Cauda, cuja direcção é orientada por acção do vento solar e é sempre oposta à do Sol, podendo atingir algumas centenas de milhões de quilómetros.
Actualmente pensa-se que são oriundos da parte exterior gelada do Sistema Solar.
Estes astros são visíveis da Terra quando passam nas proximidades do Sol, o que é devido à passagem de algum do seu gelo ao estado gasoso (sublimação), sendo reflectido pelo Sol.


Copérnico & Galileo
[1] Hipérbole: curva em que é constante a diferença das distâncias de cada um dos seus pontos, a dois pontos fixos chamados focos.
[2] foto Copérnico & Galileo / minolta 820 cxi / 80-210 mm, nos céus de Portalegre


Cometa Hale-Bopp

No céu de Portalegre - Julho 1996

AC

(foto Copérnico & Galileo)









Alandroal - vista panorâmica do castelo
AC








Terena - rua Direita (pelourinho)
AC

Monday, September 18, 2006

Os Forais Manuelinos de Alandroal e de Terena
Terminada a crise nacional de 1383 – 1385, o monarca português que dá inicio à 2ª Dinastia – D. João I – é obrigado a recompensar alguns dos que o apoiaram na conquista da coroa portuguesa. Um desses – o Condestável D. Nuno Álvares Pereira – fica senhor de mais de metade de Portugal e de um ramo seu surgirá a maior casa nobre do reino – o ducado de Bragança.
Mais tarde D. João II, mostrando o sentido da sua política interna, em jeito de aviso à poderosa nobreza, queixa-se de que apenas lhe pertencem as estradas e os caminhos de Portugal. Será preciso rolar a cabeça do duque de Bragança D. Fernando, na praça de Évora, para que a nobreza entenda as palavras do rei.
A reforma Manuelina é o culminar desse processo de centralização do poder real que teve como palco de acção principal todo o reinado de D. João II. É o tempo de D. Manuel escrever o que a força do primo ditou.
As Cartas Forais, que até então contemplavam grande autonomia jurídica e administrativa para os municípios, são expurgadas e quase reduzidas a cartilhas de normas e obrigações dos Concelhos para com a coroa.
Os diplomas Manuelinos que dizem respeito às vilas de Alandroal e de Terena estão datados de vinte de Outubro de mil quinhentos e quinze e dez de Outubro de mil quinhentos e catorze respectivamente. Trata-se de documentos com quinhentos anos, contemporâneos desse período iluminado da História de Portugal – o século XVI – e encontravam-se, em1997, na Câmara Municipal de Alandroal, em estado de conservação e cuidado impróprios para tamanha importância histórica.
Insistimos com a Câmara, de então, para fazer uma consulta à Torre do Tombo, por coincidência, ou por ironia, referida nos forais, no sentido de se encontrar o melhor processo para o seu restauro e recuperação.
Destes Forais das vilas de Alandroal e de Terena foram manuscritos três exemplares – “... do theor do quall mandamos fazer trees huum delles pera a camara da dita Villa do allomdroal e outro pera ho Senhorio dos ditos direitos e outro pera a nossa torre do tombo pera em todo tempo se poder tirar quallquer duvida que sobre isso possa sobrevyr...”; “... do theor do qual mamdamos fazer tres huu delles pera a camara da dita villa de terena e o outro pera ho Senhorio dos ditos drtos e outº pera a nossa tore do tobo...”.
Assim como as outras Cartas Foral da reforma Manuelina, os Forais de Alandroal e de Terena são assinados por Fernam de Pyna, cavaleiro da casa real.
AC
Foral Manuelino da Vila de Alandroal

(fac-símile da página inicial do documento)


Dom: manuell
Per graça de ds Rey de purtugal e dos algarves daquem e dalem maar em africa e Senhor de guynee e da comquista e navegaçam e comerçio detiopia aRabia persia e da Imdea Aquamtos esta nossa carta de forall dado pera todo sempre aa Villa de allamdroall vyrem fazemos saber que por beem das sentemças e determinaçooes Jeraaes...

Foral Manuelino da Vila de Terena

(fac-símile da página inicial do documento)

Dom manuel per graca Deos
Rey de portugal e dos algarves daquem e dallem mar em africa senhor de guine e da cõquista e navegaçam e comerçio de ethiopia arabia persia e da Imdia A quamtos esta nossa carta de foral dado pera sempre a villa de terena...

Thursday, September 14, 2006

Uma raposa feliz

Na sua volta diurna, à procura de um naco para matar a fome, a "salta pocinhas", como sempre, teve sorte: cruzou-se com um desses "bicho homem" que trocou, há muito, a espingarda pela máquina fotográfica. AC


Wednesday, September 13, 2006







CRUZEIRO DE S. BRÁS DOS MATOS


Fora de qualquer roteiro turístico, tem acesso fácil pela estrada de Alandroal a Elvas (est. nac. 373; trajecto Évora - Redondo - Alandroal - Elvas).
No 2.º cruzamento para a povoação da Mina do Bugalho, toma-se a estrada camarária, e a cerca de mil metros corta-se à direita para o cemitério de S. Brás dos Matos, onde logo se encontra o motivo do bem empregue desvio: magnífica “pedra”, fragmento de elemento arquitectónico visigótico, manufacturada em mármore (da região), encontra-se submergida em grotesca estrutura de ladrilho e cal, servindo de base ao cruzeiro da ermida de S. Brás.
Obviamente encontra-se descontextualizada, embora o nosso imaginário aqui se solte, à vista desta pequena maravilha.
No local onde se encontrava a Ermida de S. Miguel da Mota, que sucedeu no tempo (séc. V) ao Templo gentílico de Endovélico, foram identificados elementos visigóticos.
E também a fortaleza de Juromenha, aqui tão perto, tem elementos visigóticos…
...“a torre do ângulo nordeste, revestida exteriormente em alvenaria, apresenta três peças decoradas com elementos atribuíveis ao período visigótico – um pé de altar com cruz patada ao centro, um fragmento de imposta ou ábaco decorado à base de trifólios e um fragmento de friso decorado com motivo ondulante entrecruzado, envolvendo botões centrais” (Branco, F., Castelo de Juromenha – in Carta Arqueológica de Alandroal, Calado, M., p.31-32).
AC

Tuesday, September 12, 2006

SANTUÁRIO DE N.ª S.ª DA BOA NOVA


A História e a Tradição

A Ermida-Fortaleza de N.ª S.ª da Boa Nova situa-se nos arrabaldes da vila de Terena, no Concelho de Alandroal.
Construída pouco depois de 1340, diz a tradição ter sido erguida no local onde a rainha de Castela D. Maria, mulher de Afonso XI e filha de D. Afonso IV, O BRAVO, teve a feliz notícia do auxílio militar que viera pedir a seu pai.
O rei castelhano estava a braços com uma invasão dos muçulmanos merínidas que tentavam recuperar os territórios peninsulares.
Em 1340 o sultão de Marrocos Abu Halaçane atravessa o Estreito de Gibraltar e em 16 de Abril desse ano as forças navais cristãs – castelhanas – são derrotadas.
Perante a gravidade da situação Afonso XI pede auxílio a D. Afonso IV.
Envia à Corte Portuguesa a mais ilustre mensageira de Castela, D. Maria, sua mulher e filha do rei português.
As relações entre sogro e genro não eram boas. Tinha havido guerra entre Portugal e Castela de 1336 a 1339.
D. Afonso IV mostra-se renitente e diz que não.
Parte D. Maria, lavada em lágrimas, a caminho de Castela.
Repensa o rei de Portugal a decisão e manda emissários dar a «boa nova» do auxílio militar decidido.
Em Sevilha celebra-se a paz entre portugueses e castelhanos, a 10 de Julho de 1340.
Dá-se posteriormente a batalha do Salado onde as tropas muçulmanas são derrotadas.
O declínio mouro na Península torna-se irreversível.


O Santuário

Desenhado por Duarte de Armas no seu Atlas, foi levantado logo nos anos a seguir à batalha do Salado – Outubro de 1340.
De arquitectura gótica do tipo fortificado, o seu desenho é em cruz grega de braços rectangulares e coroado de ameias muçulmanas.
As fachadas principal e do lado norte têm pedras de armas reais portuguesas.
No interior, o corpo da nave e cruzeiro são decorados por painéis parietais de santos devotos e a ábside, de amplo arco triunfal gótico, ornamentada com pinturas dos oito monarcas portugueses anteriores à fundação do Santuário – de D. Afonso Henriques a D. Afonso IV.
No tecto representam-se temas bíblicos do Apocalipse de S. João, obra feita em 1706 por encargo do conde de Vila Nova.
«O retabulo dourado do altar-mor, de talha classicizante, conserva o políptico de pintura a óleo sobre tábua, de oficina eborense e atribuído a Francisco de Campos (c.ª de 1500), na figuração de assuntos marianos e da vida de Cristo.
Em oratório central, posterior, adora-se a padroeira, escultura de roca e intenso culto regional» (Túlio Espanca, Terras do Distrito de Évora).
Este belo monumento, sede de afamada romaria pascal, a Festa dos Prazeres, tem no seu interior, embutida na parede junto ao altar-mor, uma lápide votiva proveniente do destruído templo do Deus Endovélico, Deus de vários povos que habitaram esta região, nos domínios do ribeiro do Lucefecit.
Ainda hoje nas suas águas, por alturas da primavera, continuam a envolver-se cultos pagão e cristão, em acção de graças pela vida que ciclicamente brota destes campos.

AC

Wednesday, September 06, 2006








Um voto a um Deus estranho


Caio Julius Novatus chegara à Península à frente dos exércitos de Roma.
A marcha tinha sido apressada e extenuante, pois eram precisos reforços urgentes para as fustigadas legiões romanas, atormentadas por lutas sem tréguas com as tribos do território, sem vontade de se submeterem à Pax Romana. As promessas do Império eram olhadas com desconfiança e quase sempre rejeitadas com emboscadas mortíferas.
Caio vinha contrariado por abandonar, sabia-se lá por quanto tempo, os prazeres que lhe proporcionavam viver no centro do mundo e mais ainda por deixar a sua jovem esposa Vivenniae Venustae Maniliae, com quem se casara havia pouco mais de um ano, com a atribulada tarefa de zelar na sua ausência, sem outro auxílio que não fosse o da fiel escrava Lívia, pela propriedade da vinha. E para aumentar a sua preocupação e receio um correio que recebera de Roma relatava-lhe o estado de saúde de Vivenniae, que pouco tempo depois da sua partida caíra num estado de prostração e febre sem melhoras auspiciosas.
Nas horas de acalmia e repouso das caminhadas forçadas o seu pensamento reproduzia fielmente a imagem da mulher, com quem passeava junto ao Tibre nos fim de tarde encaloradas do estio, ou os passeios pela vinha que se derramava desde a casa da encosta, onde habitavam, até perder de vista. E as idas ao Teatro, ao Circo, às Termas, enfim, um turbilhão de recordações que chocavam com o ambiente hostil desta terra de caminhos de pó, de florestas e de gente estranha que os guerreava em grande algazarra quando menos eram esperados.
Naquela tarde as copas das árvores não afastavam, um pouco que fosse, o calor tórrido que parecia ser lançado das entranhas da terra.
O jovem Pretor e general romano tinha tomado o pulso aos seus homens e sabia que as suas forças estavam no limite – o que raramente acontecia. Continuar seria duro e imerecido castigo, para além de tremenda imprudência, pois em caso de ataque não haveria forças para combater – era conhecido o gosto dos bárbaros que habitavam estas paragens, em chacinar tropas desprevenidas enquanto se recompunham da fadiga, a qualquer hora do dia ou da noite.
Caio viu esconder-se o Sol na clareira da floresta, onde os últimos raios do astro cor de fogo criavam desenhos espectrais. E o bulício da brisa nocturna, tropeçando na folhagem do arvoredo, levantava suspeita e temor de um inimigo sempre presente na mente de cada legionário – umas noites atrás, um soldado, que se expusera à claridade de uma fogueira, fora varado por um dardo que partira de sítio incerto. Mesmo assim Caio decidiu fazer um passeio pelas imediações, apenas na companhia de um intenso luar que lhe guiava os passos e permitia distinguir, a alguma distância, uma sombra com forma humana, de um vulto animado procurando surpreendê-lo.
Depois de algum tempo vagueando pela floresta ouviu nitidamente o som de água em movimento, que um sopro de vento mais intenso lhe trouxe de longe. «Era um rio, não havia dúvida; –ou era uma queda de água?; não…, que o ruído seria diferente». Procurou melhor a direcção de onde vinha, alheado de outros sons da noite. Então sentiu a vibração, no seu ouvido apurado, de vozes, vozes de quinze a vinte tonalidades diferentes – a experiência permitia-lhe distinguir com precisão – que ora falavam uma língua incompreensível, ora entoavam cantares e emitiam gritos cadenciados que iam aumentando à medida que se aproximava do local que tinha situado pela audição. Caio manteve todos os sentidos alerta, pois adivinhou a quem pertenciam as vozes e qual seria o seu destino se fosse descoberto. Mas a valentia e curiosidade foram superiores a todos os receios. Dissimulado numa fraga da margem do rio, assistiu à cena como se fosse dia. O luar alumiava um altar de pedra, à volta do qual estavam reunidos duas dezenas de homens vestidos com seus trajes guerreiros, executando um ritual, certamente religioso, pois tinham sacrificado um enorme touro em cima de uma pira de madeira que se preparavam para acender. Quando as chamas se elevaram a grande altura, envolvendo o animal morto, todos eles entraram numa espécie de transe e pronunciavam uma palavra que os fazia inclinar a cabeça em direcção à Lua, no meio de cantares e danças ao ritmo da quantidade de cerveja que tinham bebido – qualquer coisa como Endvel, Endvel...
Naquela noite Caio retirou-se como se pairasse sobre o solo do bosque, procurando a escuridão para encobrir o seu regresso ao acampamento, pensativo sobre o culto a que acabava de assistir. O romano afastou-se do local, sensibilizado com aqueles homens a quem chamavam gentios mas que conheciam a música e tinham cantares próprios, adoravam um deus a quem faziam sacrifícios e amavam a Lua que lhes iluminava os rituais.
***
Não era por acaso que Treboruna chefiava as dez tribos guerreiras que ocupavam, desde há muitas gerações, o sul da Península. Dizia-se que nascera de adaga e escudo nas mãos, escorraçando os invasores que se intitulavam donos e senhores do mundo. A noite em que nasceu era invernal, a chuva e as trevas não deixavam enxergar a um palmo, o que não impediu o pai de pegar nele e colocá-lo em cima da pedra sagrada do santuário de Endovélico, a quem foi pedida protecção para a criança.
Por vontade divina ou não – os desígnios dos Deuses são insondáveis – o jovem Treboruna cresceu proporcionado em saber e força física e cedo foi persuadido pela convicção de que essas duas condições eram indispensáveis para a sobrevivência do seu povo. Numa dessas reuniões na casa dos chefes, discutia-se um desaire numa emboscada a uma coluna de soldados romanos, que terminara numa retirada desordenada, deixando um número importante de mortos no local. Atreveu-se interromper o grande chefe guerreiro Emeridas, que se desdobrava em explicações do sucedido, para lhe dizer que da próxima vez que se montasse um ardil, com os estômagos cheios de cerveja, o número de baixas seria com certeza maior. O pai ainda lhe deitou a mão ao cinto, para obrigá-lo a sentar-se, mas os que tinham direito a opinião, nessa assembleia de tribos, manifestaram acordo com as palavras sensatas de Treboruna. E o jovem guerreiro passou a ser ouvido com atenção sempre que se tratava de preparar cilada em caminho sinuoso, ou assalto a aquartelamento dos legionários, que chegavam em vagas sucessivas com o propósito de conquistar o território.
Treboruna fora eleito chefe natural das dez tribos do sul e tinha consciência que das suas decisões dependia, ou não, escorraçar o invasor. Conhecia o terreno melhor do que ninguém, sabia onde, como e quando atacar um inimigo esmagadoramente superior, conhecia-lhe os pontos fracos, a vulnerabilidade de exército regular e disciplinado nas tácticas em se defender dos ataques surpresa – bastava para isso aos seus homens, sem se exporem, um simples gesto de fazer rolar grandes pedras sobre um desfiladeiro de passagem obrigatória.
A chegada do Pretor Caio Julius Novatus, apesar de todas as precauções, utilizando batedores e observadores avançados, não iludira o chefe tribal que lhe contava, dia a dia, as passadas dadas no seu território. Sem ser visto, Treboruna via aquele poderoso exército até ao mais ínfimo pormenor, sabendo ao certo a quantidade de lanças, de cavalos, de matilhas de cães ferozes, de catapultas e outras máquinas de guerra que vinham reclamar para Roma uma terra que não lhe pertencia.
A saída nocturna de Caio fora vigiada muito de perto, com agilidade e manha próprias de quem conhecia o sítio de cada árvore, de cada arbusto, de cada pedra daquela floresta imensa. Sem saber, o Pretor era espiado por alguém que se ausentara propositadamente do ritual a que assistira emboscado na escarpa rochosa, e lhe seguia o rasto com tal disfarce e leveza que mais parecia a sua própria sombra.
Caio Julius Novatus tinha uma austeridade própria de soldado romano, difícil de claudicar perante qualquer perigo ou ameaça. A violência dos combates, em que estivera tantas vezes em risco a sua vida, revestira-o com uma carapaça discreta mas eficaz.
Treboruna era uma erupção conjugada da natureza, talhado em lutas não só contra os romanos, mas também contra os seus irmãos tribais, a quem conquistara o poder que sabia na iminência de ir parar a mãos estrangeiras. O último chefe a desafiá-lo ainda percorreu alguma distância, tetricamente, já com a cabeça decepada, caída no solo uns metros atrás.
A aparição súbita de Treboruna, como que surgido das profundezas da terra, teve em Caio um efeito paralisador, não por receio, mas apenas pelo efeito da surpresa. A claridade da noite dava realce aos contornos do guerreiro, ao mesmo tempo que deixava na penumbra a expressão do seu rosto. O espaço entre os dois era exíguo e Caio captou-lhe a intenção de não desejar confronto. Em seguida ficou surpreendido porque o ouviu dirigir-se-lhe na sua língua, tão difícil para estes povos empenhados em resistir à vontade de Roma. Sabia por demais Treboruna que dominar-lhes o idioma era estar por dentro de segredos de outro modo intransponíveis – interceptando mensageiros podia conhecer previamente planos de ataque, mapas de estradas, pontes, fortificações militares e atingir com precisão a alma do exército romano.
Desde o cair da noite tivera várias oportunidades de cortar com precisão a garganta de Caio e, no entanto, não o fizera – mestre em golpes de surpresa, a presença isolada do enviado de César quebrara-lhe o instinto da traição.
C. Julius Novatus ouviu a voz austera emitida do fundo do peito de Treboruna, deixando adivinhar um rosto crispado e decidido, sob o manto da noite: «podeis enviar vagas sucessivas de legiões para nos submeter…, a nossa vontade e determinação são superiores à força dos exércitos de todo o Império Romano..., defendemos a nossa terra sagrada, os nossos povoados, o santuário do deus santo Endovélico – que profanaste esta noite com o teu olhar, encoberto no penhasco – e também os espíritos dos nossos antepassados cujo desejo de manter livre este chão é um dever que mantemos vivo em cada um de nós.
Caio achou por bem manter um silêncio defensivo perante as palavras inflamadas do guerreiro, com quem também não desejava luta. Com passo decidido – deslizou tão perto do adversário que este deu um salto para lhe dar passagem – encaminhou-se para o acampamento.
E nessa noite nada mais se ouviu na floresta a não ser o piar das aves nocturnas, embalado pelas danças ritmadas do vento.

***

Caio acordou já o dia clareava, preenchendo imediatamente o seu pensamento com o encontro inesperado da véspera, o que lhe provocou a suspeição de ter ocupado igualmente o descanso nocturno com intensa divagação sobre o sucedido. Ficara impressionado com o personagem que lhe interrompera a deambulação noctívaga pela mata, ao ponto de sentir alguma irritação com o tom das palavras com que fora abordado. Certamente para o atemorizar, provocando um estado de espírito de insegurança que, atingindo o chefe, se reflectiria em todos os seus homens. Mas também era certo que não o quis molestar, pois confundido com as sombras da noite tê-lo-ia decapitado à traição com toda a facilidade.
Nessa manhã, quando Caio espreitou o dia através da cortina dos seus aposentos, viu chegar um correio vindo de Roma. Entre ordens de justiça e militares e notícias de outras bandas do mundo romano, vinha uma missiva de Vivenniae que lhe comunicava a cura da sua doença e o prenúncio de uma boa colheita.
Caio sorriu, inspirando fundo a frescura da aragem matinal e contemplando o céu límpido que cobria a clareira da floresta – deu graças.
O maior exército romano que até então invadira a Península dirigiu-se para norte, “em busca” desses povos que, teimosamente, contrariavam o poder do Império.
***
Muitos séculos depois foi identificada, em local de culto a Endovelico, uma inscrição latina “em cumprimento de voto”: “C. JULIUS NOVATUS ENDOVELLICO PRO SALUTE VIVENNIAE VENUSTAE MANILIAE SUA VOTUM SOLVIT”.[1]


[1] Este relato é uma ficção mas não só. Os nomes latinos de C. Julius Novatus e de Vivenniae Venustae Maniliae são de indivíduos que se apresentam como romanos – os tria nomina – embora possam ter origem peninsular. Provavelmente eram marido e mulher e, pelo menos, passaram na região que é hoje o concelho de Alandroal. Talvez aí tenham vivido e conheceram seguramente o culto a Endovélico. Vivenniae esteve doente e Caio fez um voto a Endovélico, pela sua saúde, como o atesta a epígrafe que chegou até nós. Dela nos dá conta J. Leite de Vasconcellos na sua obra “Religiões da Lusitânia: Que Endovellico tambem representou papel de deus curandeiro consta de varios documentos. Segundo a inscripção do castello do Alandroal, Caio Julio Novato cumprira um voto que havia feito a Endovellico pela saude, pro salute, da sua querida Vivennia Venusta (pag.128, VOL. II)". Um moçárabe de nome Galvo e de profissão mestre de obras, constructor do castelo de Alandroal, retirou um documento epigráfico latino, certamente já da Ermida de S. Miguel, em cumprimento de voto a Endovélico, onde constam os referidos nomes de origem romana, e cimentou-o no pano da muralha do castelo. Em circunstância e por motivo desconhecidos, esse documento foi sacado do sítio que Galvo elegeu para o eternizar e esteve alguns anos depositado a um canto da praça de armas do castelo de Alandroal, tendo desaparecido sem deixar rasto. Recentemente, num estaleiro da CMA é encontrada uma ara votiva em mármore, com inscrição latina que diz: C. JULIUS NOVATUS ENDOVELLICO PRO SALUTE VIVENNIAE VENUSTAE MANILIAE SUA VOTUM SOLVIT. 
Aqui fica o seu registo, em jeito de ficção.
AC
imagens:
fotografia Rocha da Mina
ex votum a ENDOVELLICO

Tuesday, September 05, 2006


O CASTELO VELHO DO LUCEFECIT

O Castelo Velho do Lucefecit é um dos locais de habitat humano organizado mais antigos do Alentejo. Fazendo parte de um conjunto de jóias milenares do concelho de Alandroal, é o único sítio arqueológico deste concelho classificado como monumento nacional, por dec. lei de 16/06/1910, o que nos faz recuar ainda ao tempo da monarquia. Em 1997 foi classificado um outro sítio arqueológico como de "interesse público", o povoado de Endovélico no Districto de Évora, assim se refere o classificador ao cabeço de S. Miguel da Mota, local de onde outrora dominou as vastas cercanias o santuário romano de Endovélico.
No Castelo Velho sucederam-se as ocupações desde o período Calcolítico, depois pelas Idades do Bronze e do Ferro, entre os III e I milénios a.c., assim como longos períodos de abandono, sendo o mais notório entre o final da Idade do Ferro e a ocupação Islâmica, Séc. X da nossa era, período que perfaz mil anos. Após a saída árabe não mais voltou a ter ocupação.
O sítio tem grande defensibilidade natural. O seu envolvimento estratégico por acidentes naturais é completado pelo ribeiro do Lucefecit e por um seu pequeno afluente. O forte natural é encimado por restos de panos de muralhas de xisto, que revelam as várias intervenções a que foram sujeitas ao longo dos séculos, desde os tempos proto-históricos até à época islâmica
(na fotografia vê-se, um pouco acima da meia encosta, um lanço de muralha).
Nas imediações do povoado têm-se encontrado restos de cerâmica e escórias de fundição, vestígios de antigas indústrias de manuseamento do barro e de metais.
Uma formação rochosa antropomórfica, isolada do forte, é chamada "Pedra do Charro". Segundo a tradição popular, é a sepultura de um bandido lendário, ali enterrado com todas as suas riquezas.
Do lado norte, em escarpa rochosa sobre o ribeiro do Lucefecit, encontra-se uma galeria na rocha chamada "Casa da Moura", nome certamente relacionado com a lenda de uma moura encantada, tradição outrora frequente na região.
Uma das referências mais antigas ao Castelo Velho aparece nas "Memórias Parochiaes de 1758" (inventário do património ordenado pelo Marquês de Pombal após o terramoto de 1755), do P. Bento Ferrão Castelbranco: «No sítio onde chamam castelo velho, q. está sobre a ribeira do Luçafece, houve um castello de q. hoje nada ha mais q. ruinas e não tem mais de estabelidade q. os alicerces».
AC

Monday, September 04, 2006


ENDOVÉLICO: divindade pré-latina que teve o seu máximo explendor na época romana.


No cabeço de S. Miguel da Mota, perto da Vila de Terena - Alandroal, existiu um santuário romano dedicado a Endovélico, sede de intenso culto, como se deduz de importantes documentos epigráficos chegados até nós.

"Dirigem-lhe votos os escravos, mas sobretudo um grande número de indivíduos que se apresentam à maneira romana, com os três nomes (tria nomina), ainda que é claro que alguns deles são de origem peninsular".

No material epigráfico recolhido há uma variação do nome da divindade: Endovellicus, Endovollicus, Indovellicus e, apenas em um caso, Enobolicus. Por vezez o nome é precedido do substantivo Deus e Deus Sanctus, podendo também aparecer sob a forma de abreviatura.

O significado de Endovélico tem sido objecto de diferentes interpretações, sendo de referir a de Leite de Vasconcellos, que decompõe a palavra em duas partes: a primeira corresponde ao intensivo "muito", sendo a segunda derivada da forma correspondente ao galês e bretão gwell ("bom", "melhor"), pelo que o nome significa "muito bom"; e a de A. Tovar, que relaciona o termo com a raíz beltz ("negro"), associando o significado "muito negro" à vida no além. Por esta última interpretação a divindade teria um carácter infernal, eventualmente o de condutor de almas.

Curiosamente, ali bem perto corre o ribeiro do Lucefecit, a que Afonso X, nas "Cantigas de Santa Maria", se refere como "o rio que não digo o nome". Que obscuro significado teria o rio para que o rei sábio o não mencionasse?

No entanto, Endovélico teve sobretudo um importante cunho milagroso e curandeiro, e foi nessa qualidade que atraiu a si os fiéis durante alguns séculos.

Um dos documentos epigráficos mais interessante é uma lápide em que se figura um hemiplégico (paralisia de um dos lados do corpo), a qual contém também uma inscrição ex votum (em cumprimento de voto): do paralítico a Endovélico. A hemiplegia é do lado esquerdo e admite-se que o doente tivesse sido melhorado, ou curado, por sugestão, o que leva a supor que a etiologia da doença fosse neuropsíquica.

Outros documentos epigráficos levam a concluir que o santuário teria associado um oráculo bastante consultado. Um processo usado na antiguidade para consultar as divindades era através dos sonhos. Os crentes dormiam nos templos, ou na sua proximidade. Como os sonhos eram considerados "filhos da terra", existiria perto do templo alguma "cavidade, ou "antro", onde se recebiam as inspirações do Deus. Endovélico seria, provavelmente, consultado de forma similar. Assim se explicaria a fórmula "ex imperato averno" que se lê numa ara turícrema: ENDOVELLICO SACRVM. L.T.M. ET T.M. EX IMPERATO AVERNO. A.L.F, em que a expressão "ex imperato averno" significa «segundo a determinação avernal», isto é, segundo a determinação que emanou debaixo.

Depois do Séc. V o santuário foi cristianizado, surgindo no local uma ermida cujas paredes se compunham de lápides do "templo pagão", e que tinha por orago S. Miguel Arcanjo, olhado pelos primeiros cristãos como um dos génios tutelares da medicina. AC

Sunday, September 03, 2006


RIBEIRO DO LUCEFÉCE





O topónimo Luceféce, ou Lucefécit, referente ao ribeiro afluente do rio Guadiana, parece ser uma palavra de origem latina (lucem fécit, fez luz), mas tal não se verifica. Segundo os autores João Ferreira do Amaral e Augusto Ferreira do Amaral (Povos Antigos em Portugal), a palavra é pouco verosímil para dar o nome a um rio, assim como Lucifer, um dos nomes do Demónio, palavra também pensada para origem do topónimo (talvez por isso Afonso X, em "Cantigas de Santa Maria" se lhe refere como "o rio que não digo o nome"). A forma mais antiga constante de documento, em 1262, é Udialuiciuez, sendo provável que o elemento árabe udi (o mesmo que uadi, ued, odi ou od), designativo de rio, se tenha acrescentado ao nome que os habitantes pré-árabes lhe davam. Seria a conjugação de duas palavras do antigo europeu, utilizadas em hidrónimos: "albis" significando rio, que deu, entre muitos outros, o rio Elba (antigo Albis), com "ves" que queria dizer corrente de água. Trata-se, provavelmente, dum hidrónimo tautológico, fenómeno bastante frequente.
AC








ROCHA DA MINA - "SANTUÁRIO RUPESTRE DE ENDOVÉLICO"


No concelho de Alandroal, acompanhando o serpentear do ribeiro do Lucefecit, existem numerosos vestígios deixados por povos que ali viveram no período Calcolítico, Idades do Bronze e do Ferro.
É um legado de património impressionante, marca indelével do modo de viver e maneira de ser desses nossos ancestrais avós, das suas ocupações e preocupações, das suas alegrias e tristezas..., da sua cultura.
Entre esse legado patrimonial encontra-se o santuário proto-histórico chamado Rocha da Mina, com restos de muros de xisto (elemento de construção ainda hoje utilizado na região) e escadas talhadas na rocha, único no seu género até agora conhecido a sul do Tejo.
AC