Thursday, August 02, 2012




















O Bispo Negro

Caro leitor, o título desta crónica certamente o fez pensar em Dom Çoleima, cónego negro que Dom Afonso Henriques repescou à última hora, entre os cónegos da Sé de Coimbra, para fazer dele bispo e substituir a Dom Bernardo, o anterior, que fugira da ira do Príncipe, a propósito do anúncio de uma excomunhão papal. Tendo como opções a aceitação da mitra ou a da espada, Dom Çoleima escolheu, obviamente, a primeira (O Bispo Negro – Alexandre Herculano).
Pois dos fracos não reza a História…, …e aqui a história é outra.

Dom Santuário, homem sóbrio e discreto, como mandava a sua condição de eclesiástico, regressava a casa já noite cerrada, após uma vigília de rotina por outra paróquia, não suspeitando que dois matulões, a mando, lhe faziam uma espera, emboscados pela penumbra daquela noite de  lua nova. E foi quando abriu a cancela do pequeno jardim fronteiro à casa, ao ouvir passos apressados em aproximação, então percebeu que estava a ser vítima de um cobarde e diabólico ataque. Nada que Dom Santuário não tivesse já conjeturado para si, pois uma manobrável moca saída debaixo da capa que o protegia do frio, associada aos seus conhecimentos e prática de artes marciais, puseram em fuga os dois tratantes que, vindos ao que vinham, foram aviados com uma tareia à antiga portuguesa.
Conseguindo arrancar a carapuça ao que deu primeiro o corpo ao manifesto, levando uma bem puxada mocada que lhe abriu a testa a meio, nele reconheceu um lacaio do senhor ministro da guerra, P.  Aviar-Branquinho, que desde há algum tempo dirigia a sua intervenção nos media para atacar a prelatura castrense, descontente que andava com os sermões de Dom Santuário, a quem alcunhara de “bispo vermelho”.
O senhor capelão mor das forças armadas não se deixava conter pela hierarquia a que estava subordinado, aproveitando as homilias ou palestras militares para zurzir num governo…, ou desgoverno…, – acentuava ele – de corruptios e diabinhos negros.
O senhor ministro da guerra ficara com todos os cabelos em pé, e se tem muitos a sua farta cabeleira grisalha, ao ouvir as palavras agressivas…, ofensivas…, subversivas…, conspirativas…, explosivas…, do que era também general major das FA, estando assim sob a alçada do ministério.
Para Roma seguiu uma carta por correio diplomático, entregue em mão na Nunciatura Apostólica por Dom Paulus, MNE, sublinhando que todo o governo estava uno na condenação das diatribes desconchavadas do bispo que o senhor ministro dos NE considerava mais negro que vermelho: bastava apreciar-lhe o perfil…, de tez morenaça, olhinhos penetrantes e nariz arrebitado, para lhe vestir a pele de personagem em vías de ser esturricado no “fogo do inferno”. Dom Paulus manteve a sua pose solene de estadista enquanto dissecava o assunto com o senhor Núncio: “muito apreciaria o governo ouvir uma reprimenda sobre a desnorteada…, para não ser mais duro no verbo…, cabeça mitrada”. Sua eminência, como é usual, mostrou-se de muita compreensão e prometeu resposta rápida na próxima mala diplomática.

O Santo Pai tomara conhecimento nessa manhã dos desacatos linguísticos dirigidos ao governo pelo bispo das FA. E não ficara nada agradado com o conteúdo do correio diplomático. Um qualquer pastor de almas não devia intrometer-se nos desígnios e matérias reservadas à organização política laica, fosse em que terra ou país fosse. “A Deus o que é de Deus e aos homens o que é dos homens”, assim estava gravado nas escrituras sagradas desde sempre. E “desde sempre” tem muito peso porque é matéria de fé… …e matéria de fé é matéria de fé… … não há volta a dar-lhe…
Depois de consultada a comissão para a doutrina e matérias de fé, vulgo comissão inquisitorial de inquérito, o Santo Pai decidiu ouvir telefonicamente o seu bispo desordeiro, dando-lhe o sagrado direito de defesa, muito respeitado na Instituição Universal.
Em casa de Dom Santuário  o trim trim do telefone repetiu-se sonoramente até ser atendido pela zelosa mulher a dias do prelado.

-Estou sim…, está lá…, estou sim…, …é do aroma?!

«Não senhora… …daqui é de Roma… é o Santo Pai… quero falar com o meu filho Santuário». Dona Bertita ficou em pânico ao ouvir a voz esganiçada que estava ao telefone: -Jesus…, …credo…, o pai do D. Santuário já está a fazer tijolo há muitos anos!!!... … e o patrão está no jacusi…

«Pois chama ele por favor… minha filha…», insistiu a voz esganiçada.

-AhAhAh… agora também sou filha?! – a mal humorada Bertita não esteve para mais conversas e deu o recado ao bispo, que adormecera no conforto do jacusi: -Dom Santuário…, está ali um tipo ao telefone que diz que é seu pai… …e meu também… …vá lá que eu não o entendo!

Um Dom Santuário resmungão saiu da casa de banho em roupão turco, indo atender o telefone num pequeno compartimento que existia junto à sala da casa, e servia para o efeito: -tá lá…, tá lá…, ó amigo… podia ter telefonado mais tarde para não me interromper o jacusi!

«Ó meu filho… …é o Santo Pai que está no telefono… …Deus te abençoe… …in nomine Patris et filii et spiritu sancti…» – Dom Santuário reconhece de imediato a voz esganiçada e cai de joelhos, persignando-se ao mesmo tempo que recebia a santa bênção.

-Ó meu Santo Paizinho desculpai o atrevimento pelo modo brusco com que atendi o telefono… é que a Ilda…, a governanta cá da casa…, é estúpida que nem uma porta e não consegue dar um recadinho direito – o bispo mantinha-se de joelhos, batendo com a mão no peito, estava emocionado com a bênção daquele santo telefonema.

«Podes levantar-te meu filho, para falarmos de homem para homem». A voz esganiçada vinha agora com entoação de severidade que alarmou D. Santuário.

-Mas como soube o meu Santo Paizinho que eu estava de joelhos? – perguntou ainda mais alarmado o bispo.

«Ora, ora… meu filius, então já esqueceste que sou o representante de Deus na Terra?! Pois Deus sabe tudo…».

-Isso é verdade…, se o meu Santo Paizinho sabe mesmo tudo… tudo…, esta semana podíamos jogar no euromilhões e dividíamos a meias… … sempre são 189$ milhas dele! Os olhinhos do vigário castrense exprimiam uma espécie de êxtase, enquanto anunciava o numerário.

«Ó meu pobre filius que andas transviado do rebanho do Senhor…, …percebo agora que trocaste o amor a Deus pelo amor ao vil metal. Jesu escorraçou os vendilhões do Templo e tu estás a escorraçar Deus do teu coração!».

-Não…, não meu Santo Paizinho…, tenho apenas um pequeno pé de meia para a velhice…, um seguro de saúde para Tranquilidade minha – respondeu pronto Dom Santuário, logo interiorizando que o Santo Paizinho “sabe tudo e mais alguma coisa”.

«E também recordo meu filius que nos últimos anos não tens contribuído, que fosse com uma moedinha de ouro, para a nossa sagrada Instituição!!!».

Respondeu Dom Santuário, arregalando os penetrantes olhinhos: -é a crise meu Santo Paizinho…, é a crise…

«OhOh…, as crises são um bom momento de reflexão…, …podemos considerá-las uma dádiva do Senhor que nos indica o caminho a seguir».

Dom Santuário, tapando o bucal do telefone, comentou para o lado: -este gajo tem resposta para tudo…, estou lixado…, não consigo dar-lhe a volta…, é pior que o Aviar-Branquinho e o Dom Paulus juntos.

E nem a propósito…

«Meu filius…, recebi na Santa Instituição Universal… a Dom Paulus…, com queixas relativas ao teu mau comportamento…,  te serves da mitra para ofender o governo do país».

-AhAh meu Santo Paizinho…, desconfiai desses tipos, que são falsos cristãos…, …intriguistas… …manipuladores políticos…, esses conheço eu de ginjeira…, …querem roubar aos pobres para dar aos ricos!!!

«Filius…, são eles que te pagam o pré…, …tem tento na língua…, porque se ficas sem emprego, a Santa Instituição, falida como está, não te pode dar mesada».

-Homessa…, peço perdão meu Santo Paizinho…, por essa é que eu não estava à espera…, a Instituição Universal falida?! Quer dizer que a minha reformazinha, com complementos, diuturnidades e serviços de desgaste rápido… … népias!!! E o que fizeram a tanta massa… …macarrão… …massa de cotovelo… …enfim, toda a gente sabe que havia massa por todos os lados, pois a recolha tem sido global…, …até  foi a InstituiçãoUniversal que inventou a globalização… …ou não foi?!
Dom Santuário teve uma brutal descarga de adrenalina, mas ainda ouviu o Santo Pai responder: «é a crise… ….é a crise  meu filius…,  tu o dizes!.. ».

Entretanto, depois de findo o telefonema vindo de longe, e que deixou Dom Santuário, se não perplexo, pelo menos pensativo, tocou a rebate a sineta da casa, anunciando a chegada do senhor ministro da guerra em pessoa, Aviar-Branquinho.
Dom Santuário ainda estava nos preparativos da sua higiene matinal, quando lhe foi anunciado o visitante, ora que estava introduzido na sala das visitas pela governanta Bertita. O prelado enfatizou do outro lado da porta das águas-limpas: - Bertita…, ofereça-lhe um copo da Casa do Mouro…, pode ser que lhe faça mal aos intestinos (tal era o apreço que Dom Santuário tinha pelo senhor ministro).
E assim, Bertita, que já se tinha arriado a preceito com a farda domingueira, foi com a bandeja de prata da casa oferecer um copo do tal vinho da Casa do Mouro ao senhor ministro da guerra. Este, só de ver o líquido purpúreo ficou mal disposto e recusou a oferta, cogitando para si: «o padreca quer ver se caio na esparrela…, isto é…, envenenado».
Depois de uma seca de espera no sofá, já dormitando o senhor ministro da guerra, Dom Santuário entra “triunfante” na sala.
-Como está o meu caríssimo amigo do coração, senhor ministro! E logo sua excelência, que saltara do sofá com o susto, foi abençoado pelo bispo, que era matreiro como a raposa e rápido de pensamento como o raio. E continuou, sem dar tréguas: -a que devo a honra desta visita matinal de vossa senhoria?
O ministro ia abrir a boca mas o prelado não lhe deu, novamente, hipótese: -nada pior que os media para criar factos que não existem e arranjar a confusão quando tudo é límpido e transparente. Refiro-me a umas declarações minhas, em entrevista televisiva, que muito incomodaram o senhor ministro, e o governo em geral, como me foi dada nota, posteriormente, pelo nosso Santo Pai.
Finalmente Aviar-Branquinho conseguiu abrir a boca: «Sim…Sim… estamos todos muito incomodados e consternados pela incompreensão de um membro do alto clero da Instituição Universal e também das nossas FA… senhor bispo em general major…, … as suas declarações, que me escuso repetir, puseram o governo em pé  de guerra».
D. Santuário não deixou escapar a ocasião para espetar mais uma farpa no senhor ministro: -ora aí tem uma excelente ocasião para testar os novos submarinos Tripente e Arcona… … vossa excelência aproveite o “pé de guerra” e veja o lado positivo das coisas…
O ministro salivava abundantemente e deitava gafanhotos, como se fossem projeteis contra o bispo das FA, que, em defesa, já se tinha afastado convenientemente.
Por alguma razão os prelados estudam com empenho os clássicos, o latim, a dialética e a filosofia. Dom Santuário sabe que, nestes casos, a arma mortífera é interromper o adversário…, não o deixar prosseguir o raciocínio lógico.
-Quer dizer que o senhor ministro não percebeu que as minhas palavras foram interpretadas fora do contexto…, e quando se interpretam palavras fora do contexto gera-se uma confusão dos demónios!
O ministro estava embasbacado e Dom Santuário ofereceu mais um copo do tal vinho da Casa do Mouro, com brinde: -à saúde do ministério…, do governo em geral…, e da prelatura castrense em particular.
O certo é que este copo o senhor ministro bebeu de um só gole, mostrando um facies de amargura que deixou Dom Santuário preocupado. E saiu porta fora.
Da janela fronteira à rua, o bispo pôde observar o senhor ministro da guerra, junto ao seu automóvel, a meter os dedos na boca para vomitar.
Com um sorriso de orelha a orelha, Dom Santuário comentou a cena: -governo de corruptios, diabinhos negros… …e enjoados… ou antes, enjoativos!


AC (a continuar conforme as cenas dos próximos capítulos)