Sunday, December 03, 2006


Breve conto de Natal


texto: Luis Galhardas
ilustração: Paula Costa



A cidade adormece num cenário quase rotineiro.
Quase..., porque esta noite instalou-se um frio de rachar, que penetra impiedosamente quem o enfrenta.
Só este componente atmosférico desagradável diferencia esta noite da anterior e de muitas noites antes desta, que foram metodicamente iguais.
Nos locais habituais onde as estrelas são visíveis com um simples arremelgar ou onde o vento se faz sentir, endiabrado, sem outra sorte que não seja suportá-lo, os mesmos vultos, sem nome e sem destino, acomodam-se o melhor que podem, com a esperança irrisória de que mais uma noite passe.
Tento afastar-me, abafado no calor aconchegante do meu sobretudo de burguês, fugir a sete pés daquele local habitual onde “descansam” vultos humanos sob pilhas de cartão prensado.
Um grupo de crianças soa a alguma distância com a alegria estampada nas vozes que procuram afinar a canção: –é Natal, é Natal, já nasceu Jesus...
Um dos vultos, sob a amálgama de cartão prensado, pragueja em réplica à melodia: «é Natal o caraças...», e desfila um chorrilho de obscenidades irrepetíveis. O ar fica empestado com um cheiro pouco recomendável, apesar da aragem fria se renovar constantemente.
Assustado..., fujo a sete pés daquele local habitual onde não é Natal. (autorizada a publicação pelos autores).

Saturday, December 02, 2006




















Na terra da raposa branca

A aldeia de Latan ficava num vale solitário mas muito bonito, de um país longínquo, aconchegada entre montanhas e bosques frondosos e afastada da rota da maior parte dos viajantes que não entendiam a língua dos aldeãos e desconheciam a sua laboriosa actividade. Aquelas paragens eram, no entanto, visitadas periodicamente pelos gansos selvagens, nas suas idas e vindas à Gronelândia e por um caçador que se atrevia a penetrar na terra da neve em busca de peles da raposa branca.
Os habitantes daquele recôndito lugar tinham uma fantástica e peculiar ocupação: –dedicavam-se a fabricar as prendas para as encomendas do Pai Natal, que ali vinha fazer os seus negócios.
Um frio intenso de bater o dente e tiritar chegara mais cedo e com ele a neve cobrindo os campos, como não havia memória de acontecer.
O chefe da aldeia, o senhor Zilef, sabia que um mês antes das festividades também chegava aquele carro extravagante, puxado por doze belas renas, onde vinha o mítico personagem de longas barbas e cabelos brancos, que ninguém sabia bem ao certo os anos que tinha. O velho mais velho da aldeia, o senhor Osodi, que contava mais de cento e cinquenta anos, recordava-se que quando era menino de colo já Ele chegava naquele espalhafatoso carro, sempre todo vestido de vermelho com divertido aspecto bonacheirão, apesar da sua aparência de muitas centenas de anos.
Aproximava-se mais um Natal e toda a aldeia andava em grande azáfama, pois adivinhava-se a chegada do Comprador e era preciso ter a mercadoria pronta.
Naquela manhã fria um manto branco tapetava a povoação e os bosques das redondezas, até perder de vista.
O senhor Zilef levantara-se cedo para ir à floresta com dois lenhadores, cortar a madeira necessária para concluir os últimos brinquedos e prendas de Natal.
Ao espreitar pela janela da casa não conteve um grito de espanto ao ver a neve que caíra durante a noite. O sol começava a levantar-se no horizonte batendo na alvura da terra com raios dourados que davam à natureza uma beleza rara. A mulher e os filhos do Senhor Zilef ainda dormiam. Este saiu de casa sem eles darem por isso, bem equipado para o frio que ia enfrentar; e foi-lhe agradável sentir na cara a frescura da aragem matinal enquanto caminhava para o adro da igreja, onde o aguardavam os dois lenhadores. Depois de trocarem impressões sobre o local do bosque que tinha as árvores mais apropriadas para o trabalho na madeira, os três homens embrenharam-se na floresta.
O senhor Zilef, apesar da alteração da fisionomia da paisagem provocada pelo nevão, conhecia aqueles caminhos melhor que as palmas das suas mãos e não se atrapalhou com o rumo a seguir. Avançaram os três em fila porque o trilho era estreito, o chefe da aldeia à frente, até que chegaram a uma clareira onde o percurso que faziam se cruzava com outro vindo de sul. O senhor Zilef foi o primeiro a ver as pegadas de alguém que ali passara, não muito tempo antes, em direcção a norte. Detiveram-se a observar em silêncio e os olhares que dirigiram uns aos outros foram concordantes – o caçador de raposas brancas não ia muito longe.
Uam –assim se chamava o caçador– vinha todos os anos, nos meses em que as raposas têm a pele mais bonita, colocar as suas armadilhas em sítios quase certos de êxito. E não se aproximava da aldeia, pois sabia que não era visto com bons olhos, dado o apreço que a gente do vale tinha por todos os animais.
Zilef e os dois companheiros apressaram o passo, seguindo as pegadas de Uam, pois pensaram aproveitar a caminhada para desactivar as armadilhas que o caçador montara ardilosamente para capturar os animais, sem ele dar conta do embuste. Ainda não tinham percorrido grande distância no seguimento do rasto, bem gravado na neve, quando começaram a ouvir gritos de dor e de aflição, misturados com palavras incompreensíveis que aumentavam de intensidade à medida que se aproximavam de um local do bosque indicado pelas marcas na neve. Ultrapassaram uma dobra do terreno, onde a floresta não era muito densa, e viram Uam caído por terra, preso numa armadilha que ficara esquecida, com certeza, numa das vezes que viera caçar raposas brancas.
O homem contorcia-se com dores mas era-lhe impossível libertar as pernas dos dentes afilados do cepo. À sua volta o sangue pintava o chão branco de vermelho.
Os seus olhos fixaram os três vultos que vislumbrou a alguma distância, como se de uma miragem se tratasse, implorando ajuda. Os três artífices, simultaneamente, sem trocarem palavras, regozijaram-se por um instante com o cenário macabro e ao mesmo tempo rocambolesco que tinham diante de si – desta vez o caçador fora caçado – mas logo correram em seu auxílio, abrindo as garras do terrível instrumento que tanto o atormentava.
Uam decifrou o semblante carregado de Zilef: – sabes agora por ti próprio como fazes sofrer os animais!
O chefe da aldeia apercebeu-se de imediato da gravidade do ferimento e mandou um dos lenhadores de volta à povoação, em busca do senhor Sadrallag – físico e curandeiro da aldeia de Latan – grande conhecedor da cura de ferimentos e de ervas que atenuam o sofrimento.
O dia estava perdido, o que punha em risco o fornecimento para o Pai Natal, mas era preciso salvar a vida de Uam. Este foi cuidadosamente posto no trenó que servia para o transporte da madeira.
Quando o pequeno grupo chegou, o físico Sadrallag estava a postos com mézinhas e poções que entretanto tinha preparado, ficando Uam em sua casa porque o seu estado de saúde inspirava grandes cuidados. Propositadamente e por conveniência de todos, foi omitido quem era Uam e o que fazia por aquelas paragens, ainda assim não fosse suscitar a ira de um ou outro vizinho.
–Tiveste sorte – disse-lhe Sadrallag enquanto lhe fazia o curativo com ervas doces – tiveste sorte em ser encontrado por Zilef que te salvou de uma morte certa. Alguns de nós ter-te-iam abandonado na tarde fria da floresta, até esvaíres a última gota de sangue – como tu fazes aos animais!
Uam não percebia a língua do físico, embora adivinhasse o significado das suas palavras.
Uns dias depois o ferido estava restabelecido e naquela manhã solarenga ouvia-se grande alarido para os lados da praça grande que se avistava da casa de Sadrallag. Cercado pela multidão via-se um grande carro de aspecto pitoresco, pois não tinha rodas e era movido por doze enormes renas. Todo ele cintilava com centenas de pequenas luzes que lhe definiam os contornos. Uam reconheceu o velho homem de longas barbas brancas, vestido de vermelho e que era agora o centro das atenções de toda a aldeia – o Pai Natal em carne e osso era saudado com alguma cerimónia mas amistosamente por Zilef.
Da janela onde se encontrava Uam ouvia nitidamente as vozes de todos os que falavam e ficou surpreendido por entender o que o Pai Natal dizia.
Por isso deduziu que em todas as terras do mundo se entendia a língua falada pelo velho distribuidor natalício, o que transmitiu por gestos a Sadrallag, questionando-lhe o que fazia por aquelas paragens o personagem que só fazia aparição na noite de Natal. O físico achou por bem pôr Uam ao corrente de tudo o que se fazia na aldeia e este, sem perceber as palavras ditas por Sadrallag, traduziu-lhe muito melhor o pensamento, ficando agradecido por se encontrar no meio de gente tão boa.
O Pai Natal ficava sempre dois dias na aldeia de Latan para fazer os negócios com Zilef. E como fazia todos os anos, devido à sua avançada idade de muitas centenas de anos, antes de partir novamente em viagem consultava o curandeiro da aldeia para saber se estava em boas condições físicas para enfrentar, mais uma vez, o trabalho de tanta responsabilidade.
No caminho para a casa de Sadrallag, Zilef informou o Pai Natal sobre o hóspede que ali se encontrava e narrou-lhe os acontecimentos que tinham tido lugar uns dias antes, na floresta. O velho benfeitor andante torceu o nariz com ar reprovador, pois também tinha em grande estima todos os animais, e ao encontrar-se cara a cara com Uam, cuja língua conhecia, fez-lhe saber quanto lhe desgostavam as pessoas que maltratavam os animais dos bosques ou de onde quer que fosse. Uam, que estava envergonhado perante todos, pediu mil desculpas e jurou que seria para sempre grande amigo e defensor de todos os seres vivos.
Zilef teve então a ideia de que Uam poderia regressar à sua terra aproveitando a viagem do Pai Natal para sul. Ao velho distribuidor de prendas e surpresas agradou a sugestão de ter companhia para as longas noites de trabalho que se seguiriam, pois fora aconselhado pelo físico Sadrallag a descansar, nos próximos anos, de viagem tão longa e tão difícil
Ao entardecer de uma véspera quase de Natal, ainda com um lusco-fusco cor de ocre pintando a linha do horizonte, o carro com mil luzes cintilando e puxado pelas doze belas renas, fez-se ao céu entre as despedidas dos habitantes da aldeia de Latan e rumou em direcção às estrelas que lhe indicavam o caminho do sul.
Uam não se poupou a esforços na incrível viagem de regresso a casa e tão bem desempenhou o seu papel de ajudante do Pai Natal que foi convidado a continuar a trabalhar todos os anos na rota do Natal.
O caçador não voltou a ser visto pelas terras frias do norte em busca de peles da raposa branca, embora Zilef, e apenas ele, o recordasse na figura simpática do Pai Natal.
(autorizada a publicação pelos autores)

Tuesday, November 21, 2006

Sunday, November 19, 2006

Um cão chamado Siesta Um cão vive a seu jeito e com muita satisfação: «ou és amigo do peito... ou agarra que é ladrão.» AC


Monsaraz (pelourinho)
AC

Sunday, November 12, 2006

Outono: anoitecer









AC
Torre do tempo..., tempo atrasado..., adiantado..., bom tempo..., no tempo..., fora de tempo...

















































Saturday, November 11, 2006

parada militar











AC
Aqueduto da Água da Prata

































Pelo Aqueduto vem a água de 18 kms de distância, entre a nascente em N.ª S.ª Graça do Divor e Évora. Construído entre 1531 e 1537 (reinado de D. João III), sob a responsabilidade do arquitecto Francisco Arruda, é perto da cidade que atinge a sua grandiosidade. A bela arcaria de volta perfeita tem o seu maior efeito no percurso da Quinta da Torralva, com três pequenas torres de feição classicizante. Ao atravessar a muralha fernandina, atinge a sua maior altura no troço contíguo à rua do Cano (26 metros). Depois confunde-se com o casario..., com ruas e becos, que se acomodaram entre a sua arcada.
AC

Tuesday, November 07, 2006

Saturday, November 04, 2006


A Cidade Das Cegonhas
(entre Montemor-O-Novo e Foros de Vale Figueira)




Há dias, passando pela cidade, olhei para o céu, atordoado pelo ruído ensurdecedor de um avião.
Alguém comentou: «vocês..., lá no campo..., não estão habituados aos aviões...». Ao que respondi pronto: -pois não..., estamos habituados às cegonhas! AC
Tabuleiro decorativo - Santuário S. Miguel da Mota
Alandroal



Tabuleiro decorativo encontrado nas ruínas do Santuário de S. Miguel da Mota. Segundo reconstituição de Alfredo Cândido. Atente-se na semelhança da cruz do tabuleiro, com a cruz visigótica de S. Brás dos Matos - os mesmos motivos decorativos geométricos. AC

Wednesday, November 01, 2006


Oráculo de Évora

Manuel Madeira Piçarra, escreve há 35 anos a "Nota Do Dia" do seu jornal - diário do Sul. Uma vida dedicada a Évora..., ao Alentejo... e a muito mais. É obra!
AC

Tratamento Natural…

Domingo acordo cedo com o cantarolar lançado pela garganta bem treinada do galo residente no quintal do vizinho. Tenho vontade de uma madrugada destas lá ir, incógnito, calar-lhe o pio. O safado dá o concerto da alvorada mesmo arrimado à janela do meu quarto, interrompendo-me o sono reconfortante do dia de descanso.
Começa outra chinfrineira que oiço este ano pela primeira vez – um bácoro anuncia que está de malas aviadas para o outro mundo. É a matança do porco, ritual milenar por estas bandas – aqui não há intolerância que proíba a comezaina.
O vento ajuda ao desassossego, atirando-se com assobio estridente contra tudo o que apanha pela frente. Do lado da serra chegam os primeiros frios. Acendem-se as lareiras em casa de quem as tem, tornando o ambiente acolhedor.
Do sino do convento ecoam as matinas à procura de fregueses para as orações da manhã. Perscruto os passos dos frades que percorrem os claustros, num vaivém que só eles entendem. Diz-se que levam vida austera.
Passa um carro lançando estampidos pelo escape, arremedando intensa fuzilaria. Os que ainda dormem acordam, de certeza, atordoados com o estouro.
Alguém bate à porta. Finjo não ouvir, abafando a cabeça debaixo das mantas. O toque insiste, empurrando-me para fora da cama, aos tropeções.
–Quem será que tão cedo me vem dissipar definitivamente o merecido repouso dominical? Abro a janela às apalpadelas e logo tenho que cerrar as pálpebras pela intensidade da soalheira matinal. Reconheço a voz do Sebastião Enjeitado, mais conhecido pelo Salta Léguas – assim crismado pelo característico modo de andar aos saltos – nome que lhe assenta que nem uma luva na profissão de moço de telegramas e recados que exerce no posto público e de correio, único local de onde é possível comunicar com o exterior, o que o faz andar o dia inteiro numa roda viva. Tem umas pernas enormes e uns membros superiores diminutos, fisionomia que, associada ao saltitar, me faz lembrar um canguru. Vive em casa de D. Matilde, proprietária da pensão Estrela, onde, a troco de cama, mesa e roupa lavada, ajuda no que é necessário, quando os telegramas e recados lhe deixam tempo livre.
–O que temos hoje tão cedo, Salta? O posto está encerrado e tu fazias bem em estar ainda em vale de lençóis – a ver se eu consigo passar um pouco mais pelas brasas.
«Queixe-se da patrulha da Guarda, senhor doutor, foram eles que passaram por casa de D. Matilde e deram recado para o avisar que no monte da Fonte Limpa precisam de si para o velho Busca, há três dias tão doente que foi à cama – e se é rijo o cabrão do velho!»
–E a Republicana não te disse do que se queixa o... –não importa, seja o que for que atormente o Busca, tenho que lá ir e adiar o passeio alinhavado com a família.
«Parece ser mal de barriga» – largou em voz esganiçada o Sebastião Enjeitado, quando já batia em retirada, aos saltos.
O dia que tinha amanhecido sorridente toldou-se por completo, sendo eu acompanhado no destino para o monte da Fonte Limpa, onde ia consultar o enfermo, por forte trovoada que me encharcou até aos ossos e manteve em constante sobressalto a minha égua baia.
Finalmente chego. Um rapaz toma conta do animal e a mulher do Busca, ti Maria Cosme, faz-me entrar na cozinha do monte.
Com mil lamentos pelo meu estado deplorável, introduz-me na grande chaminé para que me seque: «uma molha assim é meio caminho andado para doenças ruins e outras que se apanham com o enregelamento…, isto, senhor doutor, sem querer estar a ensinar o pai nosso ao padreca.»
Agrada-me o tom jocoso que mete na conversa. Sabe-me bem o calor do lume.
Ti Maria Cosme observa-me de soslaio e compreende, pelas voltas que o meu nariz dá, que capto o cheiro que empesta os quatro cantos da casa. Ri-se, comprometida. Logo desembucha: «o doente, graças a Deus, está melhor e não merecia a pena o senhor doutor apanhar esta carga de água, se eu adivinhasse que vinha aí uma trovoada.»
Supu-la incomodada por me ter desabado em cima quase metade do firmamento e confirmei: –quando esta manhã o Salta Léguas foi bater-me à porta, disse que é da barriga que ele se queixa; talvez coisa estragada que tenha comido…, adiantei convicto.
«O contrário, senhor doutor, o contrário…, alvitrou a ti Cosme com acento abertamente de gracejo. O mal, a meu ver, foi estar oito dias sem sujar, com sua licença senhor doutor, que assim percebe logo. Tinha a barriga inchada…, que nem o bucho de um boi enfartado...».
Dá gargalhadas soltas, ao mesmo tempo que um rubor súbito lhe invade a face. «Deus sabe que é modo de conversar..., que sempre fui uma mulher séria..., as duas últimas noites não me deixou pregar olho com ais!, uis! e outras coisas que tenho vergonha de dizer diante do senhor doutor. Felizmente a trovoada foi remédio santo. O velhaco dum raio tem medo delas desde pequeno. Quando hoje trovejou, aqui mesmo em cima do monte, fez pelos oito dias que esteve sem desenvolver».
De regresso a casa anotei, na agenda das mezinhas caseiras e tradições medicinais populares, este eficaz remédio para o “embaraço intestinal”, de que tomei conhecimento no monte da Fonte Limpa.

AC

Wednesday, October 25, 2006

Monday, October 16, 2006






A pequena lebre









Uma vida incerta será a desta pequena lebre, ainda na "cama" onde a mãe a pariu, alimenta e protege.
Será sol de pouca dura: logo que se aventure a correr mundo, encontrará mil e uma adversidades, a pior e mais certa das quais será um frente a frente com um caçador.
Teve sorte o animalzinho..., alguém lhe fez pontaria com uma máquina fotográfica, o que talvez seja um bom prenúncio.
Aqui fica o disparo.
AC

Sunday, October 15, 2006




“S.O.S.” no Mar de Barents

O submarino nuclear Kursk afundou-se a 12 de Agosto de 2000, durante um exercício naval no mar de Barents, tendo nele perecido os 118 tripulantes a bordo. Duas enormes explosões rasgaram o casco do K141, matando então grande parte da tripulação. Mas 23 tripulantes sobreviveram durante algum tempo. Estes 23 homens refugiaram-se no compartimento 9, o último do navio e localizado na popa. Assim o conta este relato ficcionado, que tenta descrever o drama humano que ocorreu naquele dia 12, no fundo do mar de Barents, e publicado na edição do jornal Dário do Sul de 1 de Setembro de 2000. O compartimento 9 é referido posteriormente em carta encontrada no cadáver resgatado do tenente-capitão Dmitriy Kolesnikov: “13,15. Todo o pessoal dos compartimentos seis, sete, e oito passou para o compartimento nove. Somos 23. Tomamos essa decisão por causa do acidente. Ninguém pode subir… escrevo por tacto”
O resgate do Kursk e da sua tripulação arrastou-se por muitos meses que se seguiram, aumentando o sofrimento das suas famílias.
In memoriam.
(fotografia AR)

Dima aguarda com alguma ansiedade o fim das manobras navais da Frota do Norte. E o facto prende-se não com a saturação provocada por muitos dias passados no mar, a bordo do submarino nuclear Kursk – a jóia da coroa de toda a Armada Russa – onde se encontra em regime de voluntariado desde há seis meses, a maior parte do tempo navegando nos fundos de águas frias e escuras, que raramente vê, e muito menos com qualquer receio inconsciente que possa ter do risco sempre presente na vida de submarinista, pois o colosso, de cuja tripulação faz parte, é não só inafundável, como precavido contra qualquer tipo de acidentes, pelos mais modernos meios da navegação.
Dima faz dezanove anos dois dias após o termo dos exercícios em que está envolvido o Kursk e esse é o facto que lhe provoca, digamos, não ansiedade mas alguma inquietação.
A mãe e a namorada vêm juntar-se-lhe na Base Naval de Murmansk, para juntos festejarem o aniversário de Dima. Sim, este é o facto que o traz inquieto, pois, vindo das águas gélidas do Mar de Barents, sente necessidade do calor aconchegante da família.
«Quem diria que o rapaz vai fazer dezanove anos?», questiona a sua imagem devolvida pelo único espelho da camarata, onde todo o espaço é pouco. O seu semblante de menino, em que desponta só agora alguma penugem, contrasta com o uniforme de marinheiro do submarino nuclear Kursk, talhado, pensar-se-á, para gente com aspecto mais endurecido. Mas Dima vê-se como um sortudo por conseguir um lugar na tripulação do navio que está baptizado com o nome da sua terra natal – a cidade de Kursk – situação que muitos jovens desejariam para si. Com o curso de técnico de motores recentemente concluído e uma compleição física razoável, ultrapassa sem dificuldade todas as barreiras, até vestir a farda de tripulante do K-141. Dima recorda o dia em que ele e os outros camaradas de incorporação vêem pela primeira vez o Kursk e entram pela escotilha de acesso à ponte de comando daquele “monstro marinho de aço” para uma visita de reconhecimento ao que será, dentro em breve, o seu navio e modo de servir a pátria Russa.
São seis e trinta da manhã de 12 de Agosto de 2000. Dima está estendido em cima do beliche que partilha com dois colegas que prestam serviço, como ele, no compartimento das máquinas. Está acordado, observando na penumbra da zona de descanso, mas como se fosse iluminada por um potente flash, a fotografia desse primeiro dia, em que se encontra acompanhado pelo seu amigo e camarada de tripulação, Liocha. Os dois jovens conhecem-se durante a recruta e fazem-se grandes amigos. Dima aguarda as sete horas da manhã, inicio do seu turno, gozando sensações rememorizadas por aquela fotografia de há meses atrás, tirada na coberta do Kursk. Vem-lhe à mente a sensação estranha que se apodera dele, quando vê o submarino nuclear K-141 pela primeira vez. O oficial de instrução mantém os marinheiros perfilados e em sentido, enquanto elogia o que considera ser um exemplo do sucesso tecnológico e do poderio militar ao serviço do povo russo – Classe Antey, tipo 949 A, SSGN, no activo desde 1995, pode navegar a uma profundidade de 500 metros...
“O gigante de metal” produz uma imagem de resistência e poder naval sem limites, ao mesmo tempo que o invade com aquela sensação estranha que a fotografia recria da mesma forma, como se fosse no próprio dia” – um calafrio percorre o corpo de Dima, o aço negro que constitui a estrutura exterior do submarino intimida-o, psicologicamente, com uma visão de irrealidade brutal, que lhe é transmitida pela envergadura do vaso de guerra, impossível de abarcar de uma só vez no campo visual.
A divagação de Dima é bruscamente interrompida pelo toque da sirene a chamar o turno das sete da manhã. Num ápice veste-se, passa a cara por água, entra na cantina sempre impregnada por um cheiro enjoativo, que logo de manhã lhe faz perder o apetite, e aí vê Liocha que faz o percurso inverso ao seu – trocam um sorriso aberto e dão um pequeno encosto ombro a ombro, sinal de que tudo vai bem . Ao segundo toque da sirene, que indica que são sete da manhã em ponto, encontra-se no seu posto na sala das máquinas/compartimento 9 do submarino nuclear Kursk, tecnicamente conhecido por K-141. O pessoal esmera-se na limpeza e arrumação do compartimento, pois vão ter a visita do comandante Gennady que nessa manhã passa revista a todo o navio, acompanhado por altos comandos da Frota do Norte.
Subitamente Dima ausenta-se para centenas de quilómetros de distância, pensa na mãe e na namorada que brevemente farão a viagem de quarenta e cinco horas de combóio de Kursk até Vidyayevo, para se abraçarem e conviverem durante a licença de dois dias que lhe é concedida no fim do exercício naval e que coincide com o seu aniversário. O chamar pelo seu nome, no tom inconfundível e modo sarcástico da voz do chefe da secção, trá-lo de volta à azáfama da sala das máquinas.
Pelos altifalantes de cada compartimento do navio sai a voz do Imediato que anuncia uma subida à superfície, o que desencadeia em Dima outro momento de descontracção e alheamento – “há vários dias que simulam aproximações a alvos nos fundos do Mar de Barents, a uma profundidade variável, entre cinquenta e cento e cinquenta metros ; sabe-lhe bem ouvir a voz de subida, sentir a proximidade do céu azul ou encoberto, da superfície do mar calmo ou agitado, batendo no casco do Kursk, escutar o vento uivante que por aquelas paragens é frio e endiabrado..., mesmo que não seja permitido ir até à coberta contemplar os elementos e perscrutar a linha do horizonte até onde a vista enxerga”...
Quando Dima se concentra pela segunda vez não tem tempo de reiniciar a sua tarefa.
Um estoiro, que parece ter origem na zona da proa, faz abalar o Kursk com alguma intensidade, quando se encontra na manobra de subida, a cerca de vinte e cinco metros da superfície. A energia é interrompida sucessivamente, os geradores de apoio não funcionam, há curto-circuitos que lançam faíscas em todas as direcções, em diversos pontos da instalação eléctrica da sala das máquinas e um pequeno incêndio surge num disjuntor. Dima sente o desejo de percorrer os outros compartimentos para se informar do sucedido e ver, com os seus próprios olhos, que Liocha se encontra bem.
«Terá sido um embate com outro submarino... ou com um navio de grande calado?... ou um torpedo mal lançado que explodiu perto da proa?...», são duas perguntas, em modo quase afirmativo, que Dima equaciona expeditamente para explicar o sucedido… e dirige aos camaradas do 9.
A voz do comandante Gennady é agora expelida pelos intercomunicadores de bordo, denunciando exasperação e alarme, dando ordens em tom inusual: –todo o pessoal aos seus postos..., injectar ar nos compartimentos centrais..., verificar o mecanismo de protecção dos reactores nucleares..., quero um relatório imediato do que se passou na sala dos torpe...
O altifalante é suspenso bruscamente e nada mais se ouve porque um estampido terrível lança um potente sopro vindo dos lados da proa; em simultâneo o Kursk é sacudido com tal violência que os marinheiros do compartimento 9 são projectados como marionetes contra a maquinaria e paredes de revestimento interior. Depois de um breve instante de atordoamento e de silêncio tumular, chega-lhe o ecoar de mistura de vozes, de gritos lancinantes, em outros compartimentos mais próximos do 9, logo abafado por um estrondo medonho característico, como o ribombar de um trovão, que aumenta constantemente de intensidade, e Dima adivinha ser a fúria das águas do Mar de Barents, que tomam apressadamente conta do K-141. Percebe-se que o submersível desce sem governo, que os dois reactores nucleares foram automaticamente desactivados, pois a falta de energia agora é total. Dima, aturdido, tenta levantar-se mas logo é arrastado pela inclinação da descida e tropeça em alguém que se encontra caído. Alguns gemidos dão sinal de gente do seu lado esquerdo, porque as vozes e gritos vindos dos outros compartimentos emudeceram. Apenas se ouve o ruído da água, muito perto mas sem o furor diabólico de há pouco. A escuridão é pavorosa e a temperatura baixa assustadoramente. O jovem marinheiro sente esse frio doloroso que lhe atinge os ossos e pensa no seu amigo Liocha, quando é arrojado por outro impacto do Kursk, que logo de seguida parece imobilizado.
Deduz que o mais moderno e poderoso submarino russo bate no fundo do Mar de Barents.
Tenta erguer-se novamente, seguro às tubagens das canalizações que descobre facilmente pela rotina de conhecer, de olhos fechados, todos os cantos do compartimento 9. Isso dá-lhe alguma vantagem perante a treva que paira a toda a volta e lhe provoca alguma angústia que tenta contrariar. Como quem sai de um estado de anestesia, começa a sentir uma forte dor na nuca e em todo o lado esquerdo do corpo, que relaciona com o facto de ter sido projectado pela potente onda de choque que se expandiu por todo o submarino. Quando fica em pé as pernas tremem, um suor gélido e viscoso cobre-lhe todo o corpo, tem dificuldade em respirar e em mover-se... é obrigado a fazer um esforço considerável para se manter firme...
A prática de ir e vir das profundidades diz-lhe que o Kursk está assente de proa e adornado a bombordo.
Ouve gemidos ténues, pela segunda vez. Chama pelos nomes dos camaradas que estão com ele na sala das máquinas: «Vladimir, Maxim... se me ouvem respondam... meu Deus o que nos está a acontecer?... que pesadelo é este?... Vladimir…, Maxim…, digam qualquer coisa..., estou a falar convosco!». Dima fala com modo irritado mas suplicante, desejando fervorosamente ouvir outra voz que não a sua. Obtém como resposta um estremecimento brusco do Kursk, acompanhado de um rugido fantasmagórico. Por instinto deixa-se cair com o “monte de aço” – inafundável. Juntos gesticulam o último estertor...

AC

Tuesday, October 10, 2006











Por onde anda o comboio?…


Paro na passagem de nível, encosto o ouvido ao carril, o que me permite ter a sensação auditiva do comboio em movimento, ainda a alguma distância.
Logo vê-se a fumarada que localiza a deslocação da locomotiva. Um silvo ecoa no ar, vindo de sul, e, a pouco e pouco, o som da composição em movimento toma conta do ambiente que envolve a estação. Os passageiros aprumam-se na gare, fazendo lembrar uma parada militar. Finalmente aparece o comboio na curva que antecede a estação, o que provoca alguma agitação.
Estou de Kodac em punho…, pronto a captar o momento da chegada do primeiro comboio da linha do sul…
AC

Sunday, October 08, 2006











Castelo de Valongo


Fantasmagoricamente belo…,
em sobranceira colina
está o nobre castelo
de Valongo…, como se assina.


Escondeu formosa princesa,
que ali viveu desterrada.
Sua memória está acesa…,
de mil vezes contada.


Em noites de "luar branco"
diz-se vê-la passear!
Pela liberdade é seu pranto,
porque lhe não pode chegar.
...
Ao viajante que procura emoções fortes, aconselho uma ida ao Castelo de Valongo. Chega-se pela estrada de Évora - Reguengos de Monsaraz, vira-se à esquerda na direcção da barragem do Monte Novo - Santa Suzana, deixando rolar o carro a baixa velocidade para gozar a paisagem, típicamente norte alentejana, e com atenção a um desvio, à direita, Valongo - Montoito. É uma estrada secundária com o piso relativamente bem conservado e algumas curvas que é preciso atacar com cautela. Numa dessas curvas, com lomba, aparece este fabuloso forte medieval.
Parei o carro, fiz as primeiras fotografias e descarreguei em folha amarelecida de jornal, único papel à mão, as sensações que captei do quadro pintado mesmo à minha frente.
AC
O sítio[1] teve provavelmente ocupação desde a época romana, depois no período visigótico e época islâmica. Foram os muçulmanos que edificaram o forte, como o comprovam algumas inscrições islâmicas nos seus muros.
Durante a reconquista cristã, a sua estrutura foi reconstruída durante o reinado de D. Afonso III (séc. XIII).
[1] No lugar de S. Vicente de Valongo há património megalítico.

Saturday, October 07, 2006


«Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
O teu encantamento!»
(Miguel Torga/Poesia Completa: Mar)


Um Filho do Mar
Teodoro Algarvio tinha estampada no rosto a profissão que exercia desde há sessenta e quatro anos.
Com apenas seis anos começara a ajudar o pai nas andanças da pesca e rapidamente aprendeu a engodar, a ajeitar anzóis com isco para pescar à linha, a remendar as redes, a escolher os melhores sítios para colocar os aparelhos e mais um sem número de segredos dessa vida feita no mar.
A cara queimada e enrugada da frequente exposição ao astro, encimada por um boné de xadrez carcomido pela maresia, atirado sobre os olhos, emprestavam-lhe um ar enigmático de quem tudo vê e não é visto.
Algarvio não era nome ou apelido mas alcunha que lhe ficara do pai, noutros tempos vindo dos lados do Algarve.
Ele, alentejano dos quatro costados, por incrível que pareça, nascera no mar numa noite em que a mãe, já em adiantado estado de gravidez, quisera acompanhar o seu homem na recolha dos enganos da lula. Foi nessa noite quando abriu as narinas para a primeira golfada de ar vital que foi inundado, até ao íntimo do seu pequeno ser, por aquele cheiro ao mar que amou desde então.
Descobri a pequena aldeia de pescadores num daqueles passeios sem destino. Ali o tempo tinha feito uma pausa e era agradável permanecer.
Uma longa rua de empedrado bem polido era amparada por casas baixas, quase todas de velhos lobos do mar, terminando a uma centena de metros do oceano. E havia um terreiro, contornado também por algumas casas, que servia ora para campo de futebol da miudagem, ora para o jogo do chito depois da refresca com umas cervejinhas ou simplesmente para dar meia dúzia de lérias e ver chegar os pequenos barcos da faina.
Aluguei um quarto em casa de gente simpática, com janela para o porto e para a ilha com seu forte seiscentista, que vi pela primeira vez.
Um turbilhão de sensações de prazer tomou conta dos meus sentidos sem qualquer resistência.
A aldeia parecia estar suspensa, assente em avantajado promontório que ali avança sobre o mar. E daquele terreiro, quase sempre animado de gente, descia-se para uma pequena enseada natural que era o porto de pesca.
Logo numa primeira investida exploratória, no dia da chegada, cruzei-me com o ti Teodoro que nessa tarde acabara de chegar da pesca. Não estava mais ninguém no porto. Descalço, com as calças arregaçadas até aos joelhos, cigarro colado ao canto da boca, já tinha amarrado o barco ao cais e feito o transbordo do produto da pescaria. Entretinha-se na limpeza da embarcação.
Aproximei-me e cumprimentei o pescador: –boa tarde senhor..., e pelos vistos também foi boa a pesca!
Uma boa tarde seca e um olhar de relance na minha direcção, escondido pela pala do boné e impedindo-me de lhe ver a expressão do rosto, desencorajaram-me a meter mais conversa. Fiquei a vê-lo carregar o saco às costas, subir a ladeira em direcção à aldeia, entrando no pequeno bar que ficava no cimo da íngreme rampa, como que a cavalgar o porto.
Nessa noite, embora cansado da viagem e com o corpo amolecido por tantas orgias com a natureza, aproveitando o pretexto de tomar uma bica, resolvi meter o nariz no Café Paraíso, assim se chamava o pequeno bar que postado à entrada do acesso para a enseada portuária, tal e qual sentinela alerta, vigiava invariavelmente quem entrava e quem saía.
Aproximei-me do balcão, bem iluminado por um candeeiro petromax que deixava o resto da sala na penumbra, e tomei o café de costas viradas para a luz, com disfarçada intenção de observar o ambiente.
O recinto era atarracado, apenas com duas mesas, uma de cada lado e algumas cadeiras dispersas. À esquerda do balcão havia uma porta por onde era expelido um ruído, ensurdecedor, que denunciava ser a casa dos matraquilhos. Pelas paredes viam-se pendurados um emblema do Benfica e outro do Sporting, muito amarelecidos, alguns calendários com insinuantes mulheres nuas, fora de prazo, tanto ao gosto das tascas portuguesas, um diploma a atestar o proprietário como “exímio tirador de imperiais” e um azulejo emoldurado, onde se lia a seguinte quadra: não venhas cantar o fado/que já não há dinheiro,/pois acabou-se o fiado/durante o ano inteiro.
Sentado numa das mesas lá estava o velho pescador, provavelmente desde que o vira chegar do mar, dispondo ao acaso, no tampo gasto da mesa de madeira, as pedras de um jogo de damas.
Topou que o observava.
Dirigiu-se-me de surpresa, com o mesmo tom seco dessa tarde, mas desta vez de olhar espevitado, bem à mostra, e ar dominador da situação: «oiça lá, vomecê sabe jogar às damas?»
Apanhando-me desprevenido, não me perguntou o nome ou de onde era natural, questões por onde se começa qualquer conversa com gente desconhecida, mas logo despejou aquela interrogação sacana – se sabia jogar às damas – à qual respondi com ingénua franqueza: -olhe, por acaso não sei... ou melhor, jogo mal, porque apenas sei que as pedras são brancas e pretas... e andam uma casa de cada vez... da táctica do jogo não percebo nada.
Ele tirou o boné da cabeça, coçou a careca com ar espantado e, depois de prolongada passa no cigarro, exclamou com incredulidade: «qual táteca qual quêi... atã se nã sabe jogar às damas o qu’é que vomecê sabe fazeri?»
Dito isto perante a pequena assistência do bar, riu-se à descarada com o meu ar de atrapalhação pela ignorância de não saber jogar às damas.
Com o mesmo repente da tirada inicial convidou: «sente-se aí qu’ê ensine-lhe.»
Ri-me também e aceitei a oferta que me fez amigo de Teodoro Algarvio.
O jogo de damas deu início a inesquecível convivência com este pescador que me ensinou, entre lances de como se comem três, os segredos do mar e da pesca, histórias e lendas fantásticas da ilha, com piratas e corsários metidos pelo meio, e os recantos inimagináveis da bela costa alentejana.
Eu ouvia, quase sempre, mais do que falava.
Numa ida à ilha, inesperadamente, contou-me o seu primeiro encontro com o mar. Recordo a convicção e orgulho que empenhou nas palavras: «devo mais a estas águas que a meu pai e a minha mãe..., quero tanto a este mar como aos meus filhos..., aqui vim ao mundo e me fiz homem, daqui levei sempre o sustento para a família..., agora estou velho e aqui quero morrer...»
Ficou em silêncio, pensativo, a olhar o mar sem fim.
Voltei em outro ano com ideia de ficar por uns dias e desejo de rever o meu amigo Teodoro.
A terra tive dificuldade em reconhecê-la – prédios aberrantes, parques de campismo, restaurantes atafulhados de gente... e até caixas de multibanco.
O pequeno bar do porto fora engolido por qualquer coisa mais parecida com gigantesca gaiola de piriquitos.
Soube, por um companheiro do jogo de damas, que Teodoro Algarvio saiu numa noite de Lua para o mar e por lá ficou.
O seu barco foi encontrado junto à ilha que o viu nascer...
AC

Wednesday, October 04, 2006

OUTONO
Cai a primeira chuva a acompanhar uma trovoada, anunciando que o Estio foi para outras paragens – para o ano talvez volte.
Com o Verão de S. Martinho pode a gente bem!
O ar traz o cheiro agradável e íntimo da terra molhada, que em breve vai iniciar um novo ciclo com a mesma coragem e determinação que cada ano imprime ao fantástico milagre da vida.
O ribombar ensurdecedor de um trovão pressagia que a tempestade está iminente. O cão enfia-se na casota – inquieto – lugar que apenas frequenta quando tem medo.
A água entorna-se dos beirais lavando o pó acumulado nas calçadas. Nas bermas das ruas formam-se pequenos rios de curso imprevisto, à procura de um sítio para desaguar.
Gotas dispersas rolam pelas vidraças das janelas. Olho. A uma delas uma velha e um menino espreitam a chuva como coisa nunca vista. A primeira que ele vê, com certeza. São bem o retrato desta estação – a vida no ocaso traz ao colo a vida no começo.
Deambulo pela cidade gozando o frenesim provocado pela intempérie. A chuva forma uma cortina cerrada que plana sobre o chão, criando a ilusão de que a Praça flutua.
Gente corre daqui para ali, aos solavancos, entre portas e arcadas, evitando a molha, como se a bátega conspurcasse corpos e almas.
À pressa recolhem-se mesas de vendedores ambulantes para salvar a mercadoria. O ardina atira uns plásticos sobre a banca, resguardando as últimas notícias.
Uma criança, com a pressa que a mãe leva, deixa cair um pacote de pipocas acabadinho de comprar. Chora. O berreiro intenso esvai-se, abafado também pelo bater de portadas que se fecham. Os pardais, felizes, agradecem sacudindo a água das abas da farpela. Um gato espreita emboscado na entrada de um pátio, matreiro, a ver se pode tragar algum.
Um pedinte estende a mão encardida à procura de uma moeda, que a actividade não se compadece com as condições atmosféricas.
Os zimbórios da Sé brilham batidos por alguns raios que cruzam o céu. O Sol, a medo, espreita por uma aberta das nuvens e logo aparecem as sete cores do arco íris.
No Rossio nem vivalma, que o sítio é desabrigado. Aqui, em outro tempo, uma carga de água, assim, frustrou o espectáculo de uma queima da malvada inquisição. Por coincidência cruzo-me com um cortejo fúnebre, que a morte escolheu um dia a condizer consigo. Penso que deve ser mais difícil partir num dia de céu limpo.
As últimas andorinhas fazem voos rasantes, acrobáticos, em despedidas até à próxima Primavera. Dentro em pouco estão aí as cegonhas.
Foi-se o mau tempo, inopinadamente, como chegou. O Sol volta a brilhar e com ele a cidade acorda pela segunda vez.
O enxame humano torna a fervilhar pelas vielas, agora sem pressas.
Passa um autocarro apinhado de crianças que regressam do primeiro dia de escola.
Pelo aroma localizo a rua onde o homem das castanhas assadas volta a montar o estaiminé. Remexe o fogareiro de barro que lança castelhanos pelos poros – "são a dez tostões a dúzia e toma lá mais duas porque és bom rapaz".
Não tarda muito, nas tascas faz-se a prova do vinho novo – memórias da adega da casa de meu avô, com grandes talhas, umas de branco, outras de tinto, à medida do paladar dos fregueses.
Um dia destes a natureza veste-se de dourados inigualáveis – riqueza que nos é oferecida sem contrapartidas.
O Outono bate à porta!
AC

Sunday, September 24, 2006



Jack - o amigo certo...

PELO RABO (NÃO) SE CONHECE UM CÃO.

Fim de tarde de Agosto sufocante. Corre uma leve brisa que empresta um colorido alternado às folhas de algumas árvores e refresca um pouco a alma dos caminhantes. Ao longe, o calor que emana da terra lança aleatoriamente nuvens de poeira no ar.
Passeio com o meu cachorro Jack por uma azinhaga dos arredores da cidade, que do local tem vista magnífica, ele a alegria em cão estampada no focinho e nas patas, que se desdobram em intensas correrias para calejar os músculos.
Aproveito também para desentorpecer as pernas ao mesmo tempo que nos vamos familiarizando com a linguagem um do outro – o que nos torna cada dia mais íntimos – indiferentes a algumas variantes genéticas que o determinaram a ele cão e a mim humano.
O Jack apresentou-se pela mão da minha filha, com uns imberbes dez dias e ainda de olhos fechados.
A pequena fechou-se no quarto na dúvida da minha reacção, pois sabia a carga de trabalhos que trouxera para casa.
Íamos mudar-nos para uma habitação com quintal e um cão seria bem vindo, para guardar claro está, a troco de um prato de sopas diário e água à descrição.
Puro engano. O Jack chegou em estado de ser guardado em confortável alcofinha e ser alimentado a biberão com leite especial para cachorrinhos, por vezes a altas horas da noite, ao sabor do seu relógio biológico.
Hoje que já nos vamos percebendo, “ladrou-me que até acha piada ter sido criado por um humano”. Coitado do cachorro, quando abriu os olhos os primeiros contornos deste mundo que vislumbrou foram o meu nariz e o biberão por onde o alimentava.
Um vizinho que nos viu chegar engraçou imediatamente com o pequeno Jack. Quando há dias nos cumprimentámos, já idos quatro meses de vizinhança, perguntou-me se o cão grande não fazia mal ao cão pequeno?! É que, de repente, o Jack cresceu vertiginosamente.
Uma das curiosidades da família tem sido aguardar o dia em que o Jack comece a fazer “chi chi” à cão adulto – rimo-nos quando o faz como se fosse uma cadela, e ele fica com focinho de não achar piada.
Observei-o há dias, precisamente quando fazia seis meses, pela primeira vez a exercitar com muita satisfação a actividade fisiológica de urinar com a perna alçada na minha canela.
O “safado mijou-me” para cima do sapato e depois olhou caninamente, deixando-me perceber a intenção: “és o maior dono do mundo e como prova da minha grande amizade ofereço-te a primeira mijadela que faço de perna alçada”.
Num desses passeios fora de horas, pela azinhaga, cruzámo-nos com um cigano que se mostrou muito interessado no Jack.
O cão fixou-o de pálpebras semicerradas e, pela primeira vez, rosnou. Depois de um leve puxão na trela sentou-se encostado à minha perna.
O cigano – a curiosidade em pessoa – logo inquiriu: «atã o canito é sê senhori?»
-Ó amigo cigano, que não sei o seu nome, quer ver que é seu? -contestei-lhe com à vontade e humor; ando a passear com um cão que tem na coleira uma chapa de registo, que trago preso por uma trela, e você pergunta se é meu! Homessa!
O Jack rosnou pela segunda vez, mais forte, mostrando que algo não lhe estava a agradar. Fiz sinal para que se acalmasse.
O cigano – continuava incógnito – apressou-se em mil desculpas: «nã lev´a mal senhori; -é qu’ando à procura dum canito que me fugiu, même igual a essi; nunca vi même nada tã iguali; se calhar sã gémos e a gente nã sabi!»
-Olhe, sinto muito que tenha perdido o seu cão. Eu se perdesse este também teria grande desgosto..., disse-lhe em tom consolador e resignado; agora essa deles serem assim tão iguais, e gémeos, não foi o que disse?; acho que está a exagerar, ou a ver mal! -rematei já meio irritado com a conversa, ou melhor, com a lata do cigano – ainda incógnito.
«Ai senhôri, nã pense mal de mim por amô Dês, é qu’eles sã même igualitos, igualitos» -insistia.
-Vejo que você está mesmo convencido e irá ficar na dúvida, -condescendi em tom disfarsadamente irónico; para que o amigo cigano – sempre incógnito – se convença que este não é o seu cão...; aqui o Jack deu um valente esticão e ladrou perigosamente na sua direcção, fazendo o homem dar um salto acrobático à retaguarda; logo de seguida colou-se de novo à minha perna, com ar seguro.
Continuei: para que desfaça a dúvida que lhe surgiu sobre o cão, que diz ser igualzinho ao seu, vamos fazer uma experiência, que com certeza o convencerá; tão simples quanto isto…, vou soltá-lo e cada um de nós vai para seu lado da azinhaga; a quem o cão acompanhar…, esse…, será o verdadeiro dono...; agora a ironia era descarada!
O cigano – nunca lhe soube o nome – apressou-se a exclamar com tónica de grande convencimento: «nã precisa soltari o animali, nã senhori, même agora vi qu’ este nã é o mê canito; atã se logo tenho olhado pr’a eli de trasêra…, logo tinha visto que nã er’ó mê canito; ond’ elis sã defrentes é no rabo, qu’ este tem um rabo maiori.»
O cigano, num ápice, desapareceu sem deixar rasto.
Dono e cachorro continuaram a caminhada, o Jack abanando aquele belo rabo que já o distingue de qualquer outro cão.

AC