Saturday, November 06, 2010

Açorda com Caldo Verde















Texto e fotografia: Luis Galhardas
Ilustração: Paula Costa

Anacleto Galhardas foi professor, lavrador e da oposição ao regime salazarista, mas acima de tudo foi um ser humano respeitável.
Semeou amizades por todo o lado.
Tive a sorte de ser seu sobrinho e amigo, e com ele ter privado em lindos dias da minha infância.
Um abraço, até sempre.


É preciso deixar assentar o pó, dizia o meu tio Anacleto para a rapaziada que amiudadas vezes o acompanhava nas suas andanças por montes e olivais.
Professor por vocação leccionara, na plena força do Estado Novo, em Vila Viçosa e Évora, e fora posto à margem por ser, descaradamente, contra o regime de Salazar.
Em cada aluno plantara um amigo.
Era agora um jovem agricultor de 40 anos e comprara um jeep land rover que enchia com filhos, sobrinhos e amigos de todos, nas suas frequentes idas ao campo levar mantimentos aos ganhões e ver como iam as coisas da lavoura.
O vício de ensinar era grande.
A lição começava quando punha o jeep a trabalhar e só terminava no fim do dia, à chegada ao Alandroal.
As histórias sucediam-se melodiosamente, umas por ele imaginadas, outras sobre acontecimentos reais de então, sempre com a finalidade de ensinar, de nos despertar a curiosidade que depois satisfazia com argúcia, de nos ajudar a fazer homens.
E se algum dos rapazes não atingia o clímax da lição dizia com a doçura de um sorriso único: deixem assentar o pó que se vê melhor.
Seu sobrinho Luís Fernando era companheiro predilecto nestes vai vem ao monte das Misericórdias, monte do Safoeiro, Quinta da Fonte das Freiras e outros lugares que visitei pela primeira vez com ele, naquele tempo grandes passeatas para um miúdo de cinco anos.
Tio e sobrinho nutriam grande amizade um pelo outro, mais parecendo pai e filho.
Numa bela manhã de Outono foi-me desafiar a casa de meus avós para ir com ele ao campo.
Agarrei-lhe a mão e já não a larguei, ainda assim não fosse a minha mãe dizer que não podia ir.
Como era habitual, choveu uma saraivada de recomendações: ...não o deixe ir para o pé dos poços, não lhe dê fruta sem ser lavada, e por aí adiante.
O meu tio, para quem eu olhava a pedir partida, sorriu e piscou-me o olho à socapa.
Meus pais, influenciados pelo meu avô paterno a quem tudo fazia mal aos intestinos, apesar de ser médico, proibiam-me de comer um sem número de manjares que muito apreciava: chouriço, toucinho crú da salga, melancia..., que tudo podia provocar diarreia e enterites.
Nessa manhã lá fomos os dois, envoltos nessa amizade que sempre nos ligou, a caminho do monte do Safoeiro.
Diverti-me imenso, como sempre, correndo atrás de bezerros e cabritos, topando uma pequena cobra que procurava esconderijo, assustada com os meus pinotes ao descobrir um “ninho de cuco”, assinalado pelo moiral das vacas que, ingénuamente, acreditei ainda ter ovos.
Chegados ao fim da manhã com léguas andadas a percorrer a herdade, a fome era muita.
Parece-me que estou a ouvir a gorda cozinheira que mal cabia na porta do monte e com um rabo maior que qualquer cadeira ou banco da mobília: o menino hoje vai comer uma açordinha com azeitonas, feita cá pela Henriqueta!
Ao ouvir falar em açorda e azeitonas, que estavam entre as muitas comidas proibidas, fiquei aflito, encostei-me à perna do meu tio, toquei-lhe na mão e balbuciei: tio, eu não posso comer isso…, se a minha mãe sabe bate-me!
Logo ele com cara séria, mas meiga e tranquilizadora, me encorajou baixinho, em jeito de segredar: tu lá em casa não comes caldo verde?
Pois a açorda é o mesmo, podes comer à vontade que não te faz mal!
E quando chegares a casa dizes que comeste caldo verde que não estás a dizer mentira nenhuma.
À tardinha, à pergunta certeira de minha mãe sobre o que tinha almoçado no monte, respondi com segurança:
“Açorda com Caldo Verde”.


Sunday, October 24, 2010













Photograph: Graeme Robertson

Silenciado a bordo

Jimmy Mubenga, angolano, 46 anos, residente no UK desde 1994, casado com Makenda Kambana (42 anos), pai de vários filhos com idades entre os sete meses e os 16 anos, camionista até 2006, ano em que se envolveu numa desordem num bar londrino, e por tal motivo condenado a dois anos de prisão e posterior ordem de deportação para o seu país de origem – Angola – que viria a ser executada(o) a 12 de Outubro passado.
Jimmy abandonara Angola, com a família, por motivos políticos, não desejando regressar por receio de represálias.
No voo BA 77 foi “silenciado” por três (in)seguranças (vulgo “gorilas”) privados, que o acompanhavam no regresso a Luanda, com brutalidade q.b. para que Mubenga fosse impedido de respirar ainda antes do BA 77 levantar  voo em direcção ao seu destino.
Por ser de grossa estatura Jimmy Mubenga foi difícil de silenciar. De nada lhe valeu reclamar «não consigo respirar…, não consigo respirar»…, ou «ajudem-me»…, ou «eles vão matar-me».
Ninguém mexeu um dedo por Jimmy Mubenga… e todos a bordo ouviram os seus gritos de desespero.
Onde estavam os elementos da tripulação da aeronave…, o seu comandante – responsável máximo por tudo o que acontece (ou não acontece) a bordo?
Vários políticos britânicos interessam-se agora pelos métodos de deportação em uso no país, reclamando uma «investigação ampla e independente»…, the usual!
Os três “silenciadores” foram ouvidos e libertados sob fiança. Para tão zelosos funcionários a empresa de segurança G4S abriu os cordões à bolsa.
Mas como vai a justiça de sua majestade tratar a tripulação e todos os passageiros do voo BA 77, que, serenamente sentados nos seus lugares de viagem, presenciaram o silenciar de Jimmy Mubenga como se assistissem a uma fita de acção Hollyoodesca.

AC

Wednesday, October 13, 2010

ÚLTIMA POESIA?...

Se eu não escrever mais nenhuma poesia
Fica aqui uma última e derradeira homenagem,
A todos os poetas do mundo na sua viagem...
Pelas palavras autênticas que cada um escrevia!

Depois sigo o meu caminho na noite estrelada
Com a esperança, enfim... de ter alguma calma,
Já não estarei quando chegar a madrugada...
Para onde será que vai descansar a alma?

Talvez encontre o caminho dos poetas mortos
Ou outro qualquer lugar onde me abrigar;
Eu que no mar atraquei em tantos portos,
Porque não hei-de mais uma vez navegar?

Última poesia?... será mesmo que vou escrever
Neste poema toda a magia das frases escritas?
Num golpe de génio deixar a escrita acontecer…
Escrevendo assim quanto penses e sintas!

Matias  José

Saturday, October 09, 2010

John Lennon (1940 - 1980) Músico Filósofo Poeta Beatle Good person Pacifista New York Lover Imagine Stand by me Give peace a chance Mother Come together Get back... Happy birthday Mr Lennon (fotografia Google)

Wednesday, October 06, 2010















Moinho  do “ti” Zé Maneta

Já não o podemos ver
está debaixo do "Alqueva"
que não acabou com a esteva
mas acabou-lhe com o ser.

Era do ti Zé Maneta:
fez alimento com fartura,
noutro tempo, sem usura!
E que boa era a "caldeta"!

 É grande recordação,
pois recordar é viver
como dizia a canção,
mesmo depois de morrer...

AC

 



Moinho do Guadiana – “ti” Zé Maneta
(submerso pela barragem do Alqueva)

Debaixo d’ água e triste
está o moinho encantado,
que ideia lhe assiste
de tornar ao antigo fado.

Voltar a sentir-nos a alma,
dando-nos sombra no estio;
e num fim de tarde calma
para nos acompanhar no rio…

Velho Moinho do “ti” Zé,
que saibas: aprendemos a lição,
mesmo já não te tendo ao pé
guardamos-te no coração.

AC

ALENTEJANOS ILUSTRES





"A Propósito" de Manuel Inácio Pestana (1924-2004)

Homem de imenso saber, da cultura, historiador, investigador, pedagogo, autor de extensa bibliografia, fundador, com Joaquim Torrinha, da revista Callipole - uma das suas paixões. Alguém com conhecimento de causa, que não eu, fará a sua biografia.
Nasceu no Alandroal, em 1924, e a sua vida decorreu entre duas terras de adopção: Portalegre e Vila Viçosa. Nesta localidade esteve longos anos ligado à Casa de Bragança, como seu Arquivista e Conservador. Foi onde tive a sorte de o conhecer, discreto mas despretensioso, afável, sempre disponível.
Ao Alandroal legou todo o seu vastíssimo espólio literário.
Aqui se publica este seu pequeno mas riquíssimo escrito sobre os vinhos do Alandroal: A FAMA DOS VINHOS DO ALANDROAL PERDIDA E NÃO RECUPERADA (publicado no jornal Diário do sul, onde era colaborador regular). Uma sua chamada de atenção, que felizmente teve eco.

Vem a talho de foice, agora que decorre em Borba a 6.ª Festa da Vinha e do Vinho e se presta homenagem à excelente qualidade deste produto e se evidencia a importância da actividade vitivinícola da região na economia nacional, vem a propósito – dizíamos – recordar o que foi a produção de vinho e a cultura da vinha no termo alandroalense.
A fama dos vinhos do Alandroal remonta aos tempos medievais da formação da nacionalidade, pois já D. Dinis preferia para a sua adega real – segundo lemos na “História de Portugal” de Damião de Peres – os vinhos de Lisboa e os do Alandroal, assim como aquele “bom vinho vermelho e branco” de que a administração municipal do Porto mandou encher dois odres para oferecer a um legado pontifício que em 1390 passou por aquela cidade. Afirmava-se ainda a qualidade excepcional dos famosos vinhos do Douro e dos arredores de Lisboa, talvez os de Carcavelos, Bucelas e Colares. A par destes sobressai então o vinho alentejano do Alandroal, com tais razões se tornou afamado que já o Mestre de Avis Martim de Avelar (1364) inventariava uma importante adega nesta vila nos seguintes termos:
“Uma adega em que estão dez talhas de vinho branco cheias e três cheias de rosete e oito de vinho vermelho;  “as cinco de bom vinho e três de mau, e duas talhas quebradas a uma tinha [tina] e um cocho [tabuleiro] de pisar tinta.
“Está uma talha de vinho na adega de João dos Passos e o vinho é do mestre e a talha de alquiel, [aluguer] e o vinho é furmigento.
“Está uma cuba na adega de Madriana Martins e o vinho do Mestre […]”.
E ainda no séc. XVIII (1756), quando os moradores de Borba, já então região privilegiada de produção vinícola, reclamam a defesa dos seus vinhos perante o incremento do plantio de vinhas nos termos vizinhos, citam-se, além de Elvas, Olivença, Campo Maior e Estremoz, precisamente o Alandroal.
Cremos que a quantidade de produção e a qualidade destes vinhos se mantiveram por largo tempo, até ao ponto de encontrarmos o registo de uma significativa representação deles na grande Exposição Portuguesa realizada em Lisboa em 1888.
Estávamos ainda no período da chamada “Revolução Verde” que desde os meados do século se caracterizara por um aumento da produtividade agrícola no país, em que, embora diminuindo a produção de trigo por força da concorrência americana aumentava a do milho e proporcionou o incremento do plantio de vinhas em substituição das searas. Por outro lado, a filoxera já dominava a Europa, de modo que em Portugal as perspectivas de exportação de vinho anunciavam-se promissoras. A crise viria atingir Portugal mas só em 1890 e daí em diante, a filoxera responsável também mais adiante: ”Entretanto, como dizíamos, o Alentejo e nele o Alandroal produziam cada vez mais e melhor vinho. Temos então, para remate desta notícia, que na referida exposição agrícola do Alandroal se apresentaram com os seus vinhos os seguintes produtores: António Joaquim Barbas e António José Biga, Joaquim José Fernandes e José Mariano Carvallho Faleiro – que eram os maiores produtores do concelho – e ainda António José Neves, Bárbara Luísa Matroco, Catarina Rita Cordeiro (Monte dos Pobres), Emídio José Simões, Fortunato José da Fonseca, José Madeira da Silveira Belo, José Joaquim Mendes, José Pedro Galhardas, Martinho José Galhardas, Joaquim Diogo Morte e Joaquim Lopes Godinho. Apresentaram vinhos tintos, brancos e licorosos (A. J. Biga) Aguardentes (A.J. Biga, E. J. Simões, F. Fonseca e J.J. Fernandes).
As quantidades de produção anual de alguns destes vinicultores alandroalenses superavam de longe as de qualquer outro dos muitos expositores do nosso distrito, o que vem demonstrar como na realidade eram de fama os vinhos desta terra, hoje perdida reduzida que, após a doença das vinhas, se tornou encaminhada a produção para as cooperativas da região, quando, historicamente pelo menos, se justificaria hoje a existência no Alandroal da sede uma região vinícola incrementada como me parece tem vindo a ser a plantação de vinhas no concelho.
Por tudo quanto fica dito, não merecia o Alandroal a homenagem dos actuais industriais da produção vinícola desta região, lembrando o seu nome numa das marcas comercializáveis?



Tuesday, October 05, 2010





















(Arquivo A CAPITAL. Publicada em 4 de OUT. 1974)

Este histórico comunicado, já publicado no oraculodasabedoria.blogspot.com, transita hoje para o lugar que lhe é devido – 5 de Outubro de 2010.
Os cruzadores Adamastor e S. Rafael, fundeados no Tejo, abriram fogo sobre o Paço das Necessidades, onde se encontrava o rei.
O primeiro tiro que atingiu o Paço provocou uma onda de pânico e desorientação.
O rei D. Manuel foi para o seu oratório pessoal, pedindo a ajuda divina. Pouco depois abandonou o local em direcção a Mafra.
Como consta do comunicado saído da MAJORIA GENERAL DA ARMADA e enviado para bordo do Adamastor: [Comunique Cruzador “Adamastor” cesse fogo Paço Necessidades. Ponto. Rei abandonou Paço. Ponto.]
Revolução Triunfante
Viva a República
Ladislau Parreira
(no comunicado é rasurada a coroa)

Sunday, October 03, 2010












FLASH
Gosto de observar estes animais… mas ao longe!
Rebuscando velhas fotografias encontrei esta que, em si, nada tem de espectacular. Mas do lado de cá da objectiva foi onde decorreu o espectáculo.
Numa tarde de passeio e relaxe parei o carro junto à vedação, onde pastavam os touros bravos, animais que muito admiro desde criança, e que não se importunaram com a presença do veículo.
Baixei os vidros e preparei a máquina para fazer uns disparos. Isolei um preto e outro castanho, mais próximos e pelo contraste.
Mas…, pensei eu…, eles (os touros bravos) estão tão calmos que vou fotografá-los fora do automóvel, junto do aramado… sempre faço uma fotografia de melhor qualidade.
De minolta em punho, junto à cerca ainda me ocorreu uma segunda ideia: eles (os touros bravos) nem deram sinal de me sentir por perto. Com alguma agilidade até consigo saltar para o lado de lá… e a coberto das giestas faço um flash mais perto… vai sair fotografia de capa de revista de touros.
Eis-me, pois, de cócoras, “escondido” pela vegetação…, e faço o disparo, um único, isto é, o único que consegui pressionar… e de que aqui dou notícia.
O touro castanho, como vêem, não se molestou com o ruído, ou se deu por isso tal não lhe agitou a bravura.
Mas o touro preto… senhores, levantou de imediato o focinho de fera picada, na direcção do barulho feito pelo disparo, ou seja, na minha direcção, como o atesta a “impressão” revelada.
Depois aconteceu o que já não podia ser revelado: investiu bestialmente em busca do som que lhe incomodara o pasto. Ainda hoje não percebo como as minhas pernas actuaram tão velozmente e como de um salto (olímpico) fiquei do lado de lá do perigo.
O monstruoso touro preto estancou a poucos metros, levantando uma nuvem de pedra solta e pó, ao mesmo tempo que expeliu duas baforadas de mau génio de dentro dos pulmões.
Da minha parte as consequências de este encontro iminente foram de somenos importância: camisa e calças estraçalhadas, um pequeno golpe na testa e arranhões vários nos braços e nas pernas…, tudo resultado do tal salto olímpico.
Ele (o touro preto) nem me tocou…

AC

Tuesday, September 21, 2010









Foi a Primeira Fotografia!


A cena campestre, que nos é dada observar, parece ter sido gravada na tela pelas mãos de um artista desconhecido. Mas não se trata de uma tela, nem o artista é desconhecido.
A imagem reconhecida como a primeira fotografia que o mundo viu, foi captada por um inventor francês em 1826, cerca de 60 anos antes da invenção oficial da máquina fotográfica.
A impressão (8 x 6.5 polgadas) foi captada por Joseph Nicephore Niepce, numa fina chapa de peltre e foi analisada por cientistas do Getty Conservation Institute, num projecto conjunto com especialistas franceses, que procuram desvendar o misterioso processo químico pelo qual a imagem foi obtida.
Niepce chamou-lhe heliografia, em reconhecimento ao poder do Sol.
«Se pensarmos na história da fotografia, no desenvolvimento do filme e da televisão, tudo descende desta 1ª imagem». É a trisavó de todas essas tecnologias – é o princípio!

FLASH

Friday, September 17, 2010




(foto: O POVO CIGANO - 2ª edição,1996, Dr. Olímpio Nunes, ilustre ciganólogo)




Este pequeno conto foi escrito há muitos anos. A ele voltei agora pela necessidade que senti de expurgar, sempre um pouco mais, o meu imaginário colectivo sobre os ciganos, sabendo eu que o mesmo será sempre "feio". Felizmente tenho um imaginário pessoal sobre os roms bem mais favorável e tolerante. Sei que, em todo o lado, ninguém os quer por vizinhos, e que se lhes deita a culpa por qualquer tipo de crime que aconteça anónimo, bastando para tal estarem por perto..., enfim..., podia desfiar um sem número de razões porque são malditos.
Mas estas deportações dos manouches, executadas pelo governo Francês, não auguram nada de bom. Pequenos acontecimentos na História cresceram e tornaram-se incontroláveis...





Mariana vive numa barraca de madeira, desgarrada do pequeno bairro entremeado de casas pobres e outras que atestam algumas posses, nas traseiras do cemitério.
Conheço esta cigana, de idade indefinida, desde há muito, o que me faz pensar que temos, mais ou menos, as mesmas primaveras, e não lhe conheço parentes, o que não é habitual na sua etnia sempre com famílias numerosas. Disse-me um dia, meio a sério, meio a brincar, que quanto a anos não sabe às quantas anda e que ficou esquecida no que foi outrora terreno baldio, nos arrabaldes da vila, em época de grande fome, tempos longínquos e difíceis, esses, em que evita cismar. Não que isso lhe ocasione qualquer desejo íntimo de voltar a ver os seus, que não sabe quem foram, ou quem são, mas pelo simples facto de se saber abandonada ali, nas traseiras de um cemitério, onde até os mortos são recordados de vez em quando.
Mariana tem, apenas, uma visão enevoada de ver partir uma caravana numerosa mas não lembra a fisionomia de ninguém, nem sequer o nome de algum miúdo mais próximo da sua leva. E, curiosamente, vê e ouve, com nitidez, um pequeno cão malhado, preso ao eixo de uma carroça desengonçada, em lamuriante ganideira que se vai diluindo no espaço entre a parede das traseiras do cemitério e o infinito.
Hoje tem, para si, a certeza que a família, vinda não sabe de onde, acampou no local onde se encontra o bairro que então não existia. E no dia de levantar arraiais esqueceram-se dela, menina pequena, que se teria afastado no entusiasmo de alguma brincadeira.
Quando alguém deu pela sua falta, muito depois do laticar do cão malhado, era tarde, longe, e menos uma boca com quem dividir as migalhas tão difíceis de angariar para o sustento do dia a dia.
Assim engendra a história que lhe dá a razão de existir.
Recolhida por um casal de velhotes sem filhos, a ti Mariana, que lhe deu o nome e o ti Júlio Alabaça, fizeram por ela o que a idade e a vida lhes permitiu.
Deixaram-lhe a pequena barraca da horta que cultivaram em tempos, hoje engolida pelo bairro e são agora seus vizinhos do lado de lá da parede do cemitério, que no Verão a recompensa com sombra acolhedora e no Inverno a protege da nortada áspera, que ali sopra por vezes com ruído ensurdecedor.
Mariana tem por mim um carinho desmesurado desde o dia em que lhe dei atenção e a tratei de uma dor de dentes velhaca.
«O senhor doutor é muito bonzinho, Deus o abençoe pelo bem que me tem feito, que eu não lhe posso pagar, e dê sorte à sua senhora e aos seus meninos, que é o que eu mais lhe desejo, que essa sorte para mim não posso desejar; e, já agora, veja lá, senhor doutor, se a sua senhora tem uns sapatinhos e uma roupinha velha que já não queira, que a mim tanta falta me faz…», -e por aí adiante, a lengalenga estende-se ao jeito de bom augúrio e benção iniciais e termina com o pedinchar, que lhe está na massa do sangue, do que quer que seja, pois de tudo necessita Mariana Só.
Quando me procura a qualquer hora do dia ou da noite, já sei que a aflição física que a apoquenta é uma dor em qualquer sítio do corpo, única “doença” que conhece, ou da alma que, essa, sempre lhe dói.
Costumo brincar com ela, comentando: -isto aqui não é uma igreja; e tirei o curso de médico, não de padre, -o que logo a põe a rir.
Um dia, vindo da caça, parei junto à porta da “mansão”, onde se encontrava sentada no poial, apanhando a soalheira do fim da manhã.
Tirei um coelho e uma perdiz do pendurador e depositei a caça no colo encovado de Mariana Só, ao mesmo tempo que lhe ia recomendando, com o intuito de evitar um desfiar de agradecimentos: -olha que o sol nesta altura do ano é manhoso, e se adoeces, depois, não tens dinheiro para me pagar a consulta!
Riu-se, envolvendo-me com o íntimo do seu ser em gratidão e tentou devolver-me as oferendas com delicadeza: «senhor doutor, isto faz mal ao meu estômago que é tão fraquinho e não tenho dentes para mastigar. Leve para os seus meninos que estão em idade de crescer; coitadinhos, bem precisam assim de uma carninha sadia como esta. Eu logo passo em sua casa para me dar o resto do pão que sobrou de ontem e um litro de leite para fazer umas sopinhas, que tão bem me sabem e que sempre consigo desmoer melhor».
-Guarda lá a tua parte da caçada e deixa-te de conversa fiada, que os meus filhos também aqui têm o seu quinhão, para o caso de hoje começarem a gostar de carne de coelho ou de perdiz, -alvitrei em tom desmotivador de qualquer outra reacção.
Os olhos expressivos de Mariana, tremelicando, fitaram os meus, deixando-me adivinhar que estava comovida.
Tentei fazer passar a ideia que não tinha reparado e procurei galhofar com a minha amiga cigana: -tu és Mariana de nome próprio e Só de apelido ou só Mariana, querendo o só significar que não tens mais nenhum nome?
Mas logo me arrependi da galhofa, de ali ter passado naquele dia e do resultado desastroso do que eu pretendia que fosse uma brincadeira geradora de risota mútua.
Mariana desatou num pranto incontrolável, soluçando como se fosse criança, e despejando rios de lágrimas pelos sulcos profundos da face.
Surpreendido pela emoção inesperada que provocara, indaguei com ternura, ao mesmo tempo que lhe afagava o rosto e as mãos: -não tinha intenção de te ofender, mulher; e o que disse foi apenas para me meter contigo…
«Eu sei, eu sei, senhor doutor, -repetiu, ainda soluçando, mas mais calma. O que me disse fez-me voltar a ver a névoa de quando fui menina, aqui neste mesmo sítio; e o que mais me enraivece é não ter explicação para o que me aconteceu, pois todos os que conheço da minha “raça” têm uma amizade que nunca acaba para com os seus… -deixou a conversa no ar, por alguns segundos, e depois rematou: eu sou mesmo Mariana Só, de nome e de tudo o mais…».

AC

Tuesday, January 12, 2010













Um cão chamado Faísca
guarda o lugar do dono
mesmo quando"trovisca",
e à noite nunca tem sono.
(cachorro rafeiro do Alentejo,
na foto com a idade de 6,5 meses)