Sunday, December 03, 2006


Breve conto de Natal


texto: Luis Galhardas
ilustração: Paula Costa



A cidade adormece num cenário quase rotineiro.
Quase..., porque esta noite instalou-se um frio de rachar, que penetra impiedosamente quem o enfrenta.
Só este componente atmosférico desagradável diferencia esta noite da anterior e de muitas noites antes desta, que foram metodicamente iguais.
Nos locais habituais onde as estrelas são visíveis com um simples arremelgar ou onde o vento se faz sentir, endiabrado, sem outra sorte que não seja suportá-lo, os mesmos vultos, sem nome e sem destino, acomodam-se o melhor que podem, com a esperança irrisória de que mais uma noite passe.
Tento afastar-me, abafado no calor aconchegante do meu sobretudo de burguês, fugir a sete pés daquele local habitual onde “descansam” vultos humanos sob pilhas de cartão prensado.
Um grupo de crianças soa a alguma distância com a alegria estampada nas vozes que procuram afinar a canção: –é Natal, é Natal, já nasceu Jesus...
Um dos vultos, sob a amálgama de cartão prensado, pragueja em réplica à melodia: «é Natal o caraças...», e desfila um chorrilho de obscenidades irrepetíveis. O ar fica empestado com um cheiro pouco recomendável, apesar da aragem fria se renovar constantemente.
Assustado..., fujo a sete pés daquele local habitual onde não é Natal. (autorizada a publicação pelos autores).

Saturday, December 02, 2006




















Na terra da raposa branca

A aldeia de Latan ficava num vale solitário mas muito bonito, de um país longínquo, aconchegada entre montanhas e bosques frondosos e afastada da rota da maior parte dos viajantes que não entendiam a língua dos aldeãos e desconheciam a sua laboriosa actividade. Aquelas paragens eram, no entanto, visitadas periodicamente pelos gansos selvagens, nas suas idas e vindas à Gronelândia e por um caçador que se atrevia a penetrar na terra da neve em busca de peles da raposa branca.
Os habitantes daquele recôndito lugar tinham uma fantástica e peculiar ocupação: –dedicavam-se a fabricar as prendas para as encomendas do Pai Natal, que ali vinha fazer os seus negócios.
Um frio intenso de bater o dente e tiritar chegara mais cedo e com ele a neve cobrindo os campos, como não havia memória de acontecer.
O chefe da aldeia, o senhor Zilef, sabia que um mês antes das festividades também chegava aquele carro extravagante, puxado por doze belas renas, onde vinha o mítico personagem de longas barbas e cabelos brancos, que ninguém sabia bem ao certo os anos que tinha. O velho mais velho da aldeia, o senhor Osodi, que contava mais de cento e cinquenta anos, recordava-se que quando era menino de colo já Ele chegava naquele espalhafatoso carro, sempre todo vestido de vermelho com divertido aspecto bonacheirão, apesar da sua aparência de muitas centenas de anos.
Aproximava-se mais um Natal e toda a aldeia andava em grande azáfama, pois adivinhava-se a chegada do Comprador e era preciso ter a mercadoria pronta.
Naquela manhã fria um manto branco tapetava a povoação e os bosques das redondezas, até perder de vista.
O senhor Zilef levantara-se cedo para ir à floresta com dois lenhadores, cortar a madeira necessária para concluir os últimos brinquedos e prendas de Natal.
Ao espreitar pela janela da casa não conteve um grito de espanto ao ver a neve que caíra durante a noite. O sol começava a levantar-se no horizonte batendo na alvura da terra com raios dourados que davam à natureza uma beleza rara. A mulher e os filhos do Senhor Zilef ainda dormiam. Este saiu de casa sem eles darem por isso, bem equipado para o frio que ia enfrentar; e foi-lhe agradável sentir na cara a frescura da aragem matinal enquanto caminhava para o adro da igreja, onde o aguardavam os dois lenhadores. Depois de trocarem impressões sobre o local do bosque que tinha as árvores mais apropriadas para o trabalho na madeira, os três homens embrenharam-se na floresta.
O senhor Zilef, apesar da alteração da fisionomia da paisagem provocada pelo nevão, conhecia aqueles caminhos melhor que as palmas das suas mãos e não se atrapalhou com o rumo a seguir. Avançaram os três em fila porque o trilho era estreito, o chefe da aldeia à frente, até que chegaram a uma clareira onde o percurso que faziam se cruzava com outro vindo de sul. O senhor Zilef foi o primeiro a ver as pegadas de alguém que ali passara, não muito tempo antes, em direcção a norte. Detiveram-se a observar em silêncio e os olhares que dirigiram uns aos outros foram concordantes – o caçador de raposas brancas não ia muito longe.
Uam –assim se chamava o caçador– vinha todos os anos, nos meses em que as raposas têm a pele mais bonita, colocar as suas armadilhas em sítios quase certos de êxito. E não se aproximava da aldeia, pois sabia que não era visto com bons olhos, dado o apreço que a gente do vale tinha por todos os animais.
Zilef e os dois companheiros apressaram o passo, seguindo as pegadas de Uam, pois pensaram aproveitar a caminhada para desactivar as armadilhas que o caçador montara ardilosamente para capturar os animais, sem ele dar conta do embuste. Ainda não tinham percorrido grande distância no seguimento do rasto, bem gravado na neve, quando começaram a ouvir gritos de dor e de aflição, misturados com palavras incompreensíveis que aumentavam de intensidade à medida que se aproximavam de um local do bosque indicado pelas marcas na neve. Ultrapassaram uma dobra do terreno, onde a floresta não era muito densa, e viram Uam caído por terra, preso numa armadilha que ficara esquecida, com certeza, numa das vezes que viera caçar raposas brancas.
O homem contorcia-se com dores mas era-lhe impossível libertar as pernas dos dentes afilados do cepo. À sua volta o sangue pintava o chão branco de vermelho.
Os seus olhos fixaram os três vultos que vislumbrou a alguma distância, como se de uma miragem se tratasse, implorando ajuda. Os três artífices, simultaneamente, sem trocarem palavras, regozijaram-se por um instante com o cenário macabro e ao mesmo tempo rocambolesco que tinham diante de si – desta vez o caçador fora caçado – mas logo correram em seu auxílio, abrindo as garras do terrível instrumento que tanto o atormentava.
Uam decifrou o semblante carregado de Zilef: – sabes agora por ti próprio como fazes sofrer os animais!
O chefe da aldeia apercebeu-se de imediato da gravidade do ferimento e mandou um dos lenhadores de volta à povoação, em busca do senhor Sadrallag – físico e curandeiro da aldeia de Latan – grande conhecedor da cura de ferimentos e de ervas que atenuam o sofrimento.
O dia estava perdido, o que punha em risco o fornecimento para o Pai Natal, mas era preciso salvar a vida de Uam. Este foi cuidadosamente posto no trenó que servia para o transporte da madeira.
Quando o pequeno grupo chegou, o físico Sadrallag estava a postos com mézinhas e poções que entretanto tinha preparado, ficando Uam em sua casa porque o seu estado de saúde inspirava grandes cuidados. Propositadamente e por conveniência de todos, foi omitido quem era Uam e o que fazia por aquelas paragens, ainda assim não fosse suscitar a ira de um ou outro vizinho.
–Tiveste sorte – disse-lhe Sadrallag enquanto lhe fazia o curativo com ervas doces – tiveste sorte em ser encontrado por Zilef que te salvou de uma morte certa. Alguns de nós ter-te-iam abandonado na tarde fria da floresta, até esvaíres a última gota de sangue – como tu fazes aos animais!
Uam não percebia a língua do físico, embora adivinhasse o significado das suas palavras.
Uns dias depois o ferido estava restabelecido e naquela manhã solarenga ouvia-se grande alarido para os lados da praça grande que se avistava da casa de Sadrallag. Cercado pela multidão via-se um grande carro de aspecto pitoresco, pois não tinha rodas e era movido por doze enormes renas. Todo ele cintilava com centenas de pequenas luzes que lhe definiam os contornos. Uam reconheceu o velho homem de longas barbas brancas, vestido de vermelho e que era agora o centro das atenções de toda a aldeia – o Pai Natal em carne e osso era saudado com alguma cerimónia mas amistosamente por Zilef.
Da janela onde se encontrava Uam ouvia nitidamente as vozes de todos os que falavam e ficou surpreendido por entender o que o Pai Natal dizia.
Por isso deduziu que em todas as terras do mundo se entendia a língua falada pelo velho distribuidor natalício, o que transmitiu por gestos a Sadrallag, questionando-lhe o que fazia por aquelas paragens o personagem que só fazia aparição na noite de Natal. O físico achou por bem pôr Uam ao corrente de tudo o que se fazia na aldeia e este, sem perceber as palavras ditas por Sadrallag, traduziu-lhe muito melhor o pensamento, ficando agradecido por se encontrar no meio de gente tão boa.
O Pai Natal ficava sempre dois dias na aldeia de Latan para fazer os negócios com Zilef. E como fazia todos os anos, devido à sua avançada idade de muitas centenas de anos, antes de partir novamente em viagem consultava o curandeiro da aldeia para saber se estava em boas condições físicas para enfrentar, mais uma vez, o trabalho de tanta responsabilidade.
No caminho para a casa de Sadrallag, Zilef informou o Pai Natal sobre o hóspede que ali se encontrava e narrou-lhe os acontecimentos que tinham tido lugar uns dias antes, na floresta. O velho benfeitor andante torceu o nariz com ar reprovador, pois também tinha em grande estima todos os animais, e ao encontrar-se cara a cara com Uam, cuja língua conhecia, fez-lhe saber quanto lhe desgostavam as pessoas que maltratavam os animais dos bosques ou de onde quer que fosse. Uam, que estava envergonhado perante todos, pediu mil desculpas e jurou que seria para sempre grande amigo e defensor de todos os seres vivos.
Zilef teve então a ideia de que Uam poderia regressar à sua terra aproveitando a viagem do Pai Natal para sul. Ao velho distribuidor de prendas e surpresas agradou a sugestão de ter companhia para as longas noites de trabalho que se seguiriam, pois fora aconselhado pelo físico Sadrallag a descansar, nos próximos anos, de viagem tão longa e tão difícil
Ao entardecer de uma véspera quase de Natal, ainda com um lusco-fusco cor de ocre pintando a linha do horizonte, o carro com mil luzes cintilando e puxado pelas doze belas renas, fez-se ao céu entre as despedidas dos habitantes da aldeia de Latan e rumou em direcção às estrelas que lhe indicavam o caminho do sul.
Uam não se poupou a esforços na incrível viagem de regresso a casa e tão bem desempenhou o seu papel de ajudante do Pai Natal que foi convidado a continuar a trabalhar todos os anos na rota do Natal.
O caçador não voltou a ser visto pelas terras frias do norte em busca de peles da raposa branca, embora Zilef, e apenas ele, o recordasse na figura simpática do Pai Natal.
(autorizada a publicação pelos autores)