Sunday, September 24, 2006


Um Conto Medieval – Enfrentamento em Ouguela


Corria o ano de 1475 quando se deu o acontecimento que me disponho relatar. Pretendo que através do meu punho, embora com imprecisões de linguagem e de gramática, pois não sou um erudito, fique, para conhecimento dos que hão-de vir, este feito extraordinário que todos nós habitantes da vila de Ouguela presenciámos naquela Primavera de 1475. Situem-se no tempo e local onde agora me encontro.
Ouguela é uma bela e impenetrável fortaleza, no cimo de um morro isolado, sentinela alerta ao outro lado da fronteira. Que ali começa Castela !
Vai para dois séculos que passou a terra portuguesa, pelo tratado de Alcanizes. Reinava o nosso rei D. Diniz. E parece que devido aos bons ofícios de sua mulher, a Rainha Santa Isabel.
Mas nem sempre os assuntos entre os reinos de Portugal e de Castela se resolveram por tratados. Não vai longe a terrível guerra do final dos anos trezentos em que, com muito sofrimento e perda de vidas humanas, tivemos que defender o nosso território e identidade nacionais. Oiço o eco das carriagens em movimento, daquela imensa onda de castelhanos arrasando aldeias e lugarejos, tudo destruindo. E também o som ensurdecedor dos trons, armas diabólicas que podem matar, à distância, vários homens ao mesmo tempo.
E tudo isto eu não presenciei mas ouvi contar a meu avô que esteve na batalha dos Atoleiros, com a tropa do então jovem D. Nuno Álvares Pereira.
Os dois reinos voltam a não se entender e a causa tem ligeiras semelhanças com a que deu origem à desavença de há cem anos. Uma questão provocada, agora, pela sucessão ao trono de Castela.
O rei de Castela e Leão Enrique IV, alcunhado de “El Impotente”, casou em segundas núpcias com a irmã mais nova de D. Afonso V, D. Joana. Deste casamento nasce a infanta também de nome Joana, que dizem as más línguas ser filha de D. Beltran de la Cueva, Duque de Alburquerque e valido do rei. Verdade, ou não, a princesa é conhecida em toda a Castela por Joana a Beltraneja.
Enrique IV e sua mulher por mais de uma vez declararam a legitimidade da filha, e no seu testamento o rei castelhano, consta-se, entrega ao cunhado a protecção da sua herdeira, com quem o convida a casar, assim como a defesa e governo de seus reinos.
No entanto, a irmã de Enrique IV, Isabel, filha como ele de D. João II de Castela, mas sendo a mãe a portuguesa, também de nome Isabel, filha do Infante D. João de Portugal, a quem corre nas veias sangue de Nuno Álvares Pereira, é uma mulher inteligentíssima e decidida.
Sem autorização e conhecimento do irmão casa com o príncipe aragonês D. Fernando.
E quando em Dezembro de 1474 morre Enrique IV é aclamada rainha na maior parte do reino de Castela.
A D. Isabel e a D. Fernando chamam-lhe hoje os reis católicos de Hespanha, pois são pessoas muito dedicadas à religião.
Dizem muitos judeus e outros infiéis que por aqui passam fugidos, que muitos outros têm ardido em grandes fogueiras à ordem de um tribunal a que chamam da Santa Inquisição, pedido por estes reis ao Papa para combater as heresias que minam o reino.
Mas perante o desenrolar de acontecimentos provocados pela morte de Enrique IV, o seu cunhado D. Afonso V decide intervir na sucessão do reino vizinho, em defesa de sua sobrinha e prometida, D. Joana, que se vê também aclamada em muitas praças ao longo da fronteira com Portugal.
Assim principia uma guerra confusa que durará quatro anos, de 1475 a 1479, em que se deu a célebre batalha de Touro, na qual o porta-bandeira português, chamado Duarte de Almeida, decepado gravemente das mãos a segura com os dentes e o que lhe resta dos membros, levantando o ânimo das nossas tropas.
De tudo o que tenho ouvido contar, ainda não percebi quem saiu vitorioso desta batalha, mas a guerra, políticamente, foi-nos desfavorável, pois no trono de Castela está sentada D. Isabel.
Ouguela, como praça portuguesa que é, alinha pelo partido da sobrinha do rei de Portugal, D. Joana, a Excelente Senhora.
Além da batalha de Touro os recontros resumiram-se a escaramuças fronteiriças, embora algumas delas tenham ficado célebres por factos como o que passo imediatamente a relatar.
Voltemos, então, ao ano de 1475.
***
Vai uma Primavera escaldante este ano. Não chove gota de água há meses, que me lembre desde Novembro passado, e os últimos Invernos passaram despercebidos. Fontes e poços começam a fraquejar. Felizmente a cisterna do terreiro do castelo tem bastante água. O nosso alcaide, João da Silva, mandou racioná-la. Teme, concerteza, que um assédio prolongado nos deixe sem água, o que seria desastroso.
Este alcaide é um grande capitão. Por isso o rei o nomeou, também, camareiro-mor do príncipe D. João. É um homem generoso, justo e avisado.
Desde o início do mês de Abril obriga todo o povo das cercanias a recolher-se no interior da muralha a partir do pôr do sol. Receia um ataque vindo de Alburquerque, praça castelhana postada do outro lado da fronteira cerca de duas léguas – em dias de boa vista parece estar mais perto – e que tem forte guarnição militar.
Acima de tudo João da Silva quer ter em guarda e proteger a população que nada tem a ver com esta guerra.
Ouvi-o, há dias, dizer para o Prior da Igreja de N.ª S.ª da Graça e para o Capitão da guarda: «não quero que esta gente seja molestada por querelas que lhe não dizem respeito, nem entende. Nós, soldados, estamos aqui para obedecer e defender o nosso rei e senhor D. Afonso V. Essa é a nossa obrigação de soldados e tudo faremos para que assim seja».
Retorquiu-lhe o Prior: «Deus Nosso Senhor vai pôr cobro rápidamente a esta contenda e se isso não acontecer será, certamente, para sua maior glória e...»
Interrompeu-lhe o discurso o alcaide e replicou: «nunca perceberei como é que uma guerra pode servir para glória de alguém, ou do que quer que seja!»
É assim João da Silva, um homem directo, determinado, sem papas na língua. E tinha razão nas suas conjecturas em relação a Alburquerque.
Tem esta vila também valente alcaide: Juan Fernandez Galindo, 3.º Mestre de Alcântara, homem experimentado na arte militar, rijo como o metal da armadura que enverga para combater mas sempre pronto a auxiliar quem lhe bate à porta.
Em Alburquerque ninguém conhece o rosto da fome e não há viajante que fique a dormir debaixo das estrêlas. A todos acolhe e enche o estômago.
E também não há malfeitor que se aventure por aquelas bandas, pois arrisca-se a, num abrir e fechar de olhos, dançar morto na ponta de uma corda, suspenso da arrepiante altura da torre de menagem.

***
Juan Fernandez Galindo mandara aprontar para combate a tropa sediada em Alburquerque mas nem ao seu Capitão da guarda dera conta das suas intenções.
O dia amanhece solarengo naquele 6 de Maio de 1475. Vai fazer muito calor. Quando os primeiros raios de sol chegam à praça de armas de Alburquerque um pequeno exército está pronto para qualquer eventualidade, esperando que o seu comandante apareça à porta principal da alcáçova.
Este é um dia especial para o alcaide Galindo. O seu filho mais novo, Pedro Fernandez Galindo, com apenas catorze anos de idade, feitos naquele dia, e contra a vontade de sua mãe, está entre os cavaleiros que o vão acompanhar na expedição a Ouguela.
Esta sortida é outro motivo de orgulho que sente naquela hora. Nunca se tendo encontrado frente a frente com João da Silva, conhece bem o alcaide de Ouguela. Por várias vezes o avistou do outro lado da raia, junto ao rio Xévora, em episódios de caça ao javali.
Sabe da valentia e nobreza do seu adversário que não é homem de vergar.
É neste estado de espírito que Juan Fernadez Galindo se dirige aos seus homens de armas:
«El rey de Portugal ha invadido nuestros Reinos de Castilla y Leon para quitar el trono a nuestra reyna y señora Doña Isabel y poner en su lugar a su sobrina Doña Juana.
La mayoría de las plazas del Reino, al igual que lo hicimos nosotros, después de la muerte del rey Enrique, han proclamado inmediatamente a Doña Isabel y a su marido, Don Fernando de Aragón, como sus legítimos Reyes. He decidido que nos vamos hoy a Ouguela para delimitar bien la soberanía de Castilla y devolver esa ciudad a nuestro Reino. Esa es nuestra misión. Que nos guíe la Virgen y su hijo Cristo Rey»
Em Ouguela essa manhã de 3ª feira, 6 de Maio de 1475, também acorda sorridente e adivinhando um dia quente.
Abre-se a porta de armas ainda de madrugada, para deixar sair um correio a caminho de Évora, onde se encontra o príncipe D. João, relatando-lhe João da Silva as suas últimas suspeitas sobre movimentações de tropas castelhanas ao longo desta parte da fronteira.
Alguns homens de sua confiança, colocados estratégicamente em terra castelhana, informam-no com rapidez do que por ali se vai passando.
Ainda há poucos dias teve notícias de D. Afonso V e sua hoste já dentro de Castela, a caminho de Plasencia, ao encontro de sua sobrinha D. Joana.
E soube, também, que o rei português não tem sido importunado na sua marcha, a não ser por alguns provocadores que quando a tropa portuguesa lhes deita a mão ficam a baloiçar na árvore mais próxima.
Nessa manhã, igual a tantas outras, o alcaide encontra-se bem cedo na Igreja Paroquial a ouvir missa. O silêncio habitual na casa de Deus é cortado, súbitamente, por passos apressados que enchem os ouvidos dos devotos e denunciam preocupação e alarme.
João da Silva sabe imediatamente que qualquer coisa de anormal acontece e ao virar-se na direcção do som tem a seu lado o Capitão da guarda Álvaro Pais.
-Tendes, com certeza, Álvaro Pais grave motivo para interromper as minhas orações e até adivinho o que me vindes dizer, atirou o alcaide ao seu homem!
A boca de Álvaro Pais, presa de estupefacção, não articula palavra e o alcaide adianta: -temos visitantes?
-É isso mesmo senhor, ressoa a voz grave do Capitão por todo o Templo, abafando as preces do Prior e fiéis. D. Juan Galindo encontra-se a trote à frente dos seus homens de armas e dirigem-se para aqui.
Mal o dia começou a clarear, a sentinela da torre maior viu grande poeirada para os lados de Alburquerque. Como a terra anda cheia de pó e há vento, pensou que era um daqueles remoinhos habituais nesta altura do ano. E descansou. Pouco tempo depois, ao enxergar outra vez na mesma direcção, estranhou continuar no ar aquela mancha de poeira. Foi então que percebeu a sua causa!
Agora vêem-se bem. São cerca de cem cavaleiros e quinhentos peões, comandados pelo próprio D. Galindo. Vêm armados até aos dentes, Senhor!
De um pulo o alcaide de Ouguela está fora da Igreja a subir as escadas da torre de menagem. E não fica com dúvidas sobre as intenções do grupo.
***
À nuvem de pó, que denuncia os castelhanos e é agora uma enorme cortina acastanhada que se vai refazendo, junta-se, passado algum tempo, a onda sonora do movimento da coluna: mistura de vozes, relinchares, trotear, passos apressados e sons metálicos.
Já encandeiam as luzes de mil sóis reflectidos por elmos e escudos. E tudo isto agora é nítido, provocando dentro do peito de quem espera um eco compassado ao ritmo da aproximação.
Em Ouguela fecha-se a porta de armas e há grande azáfama dentro muros. Fazem-se os últimos preparativos para receber os de Alburquerque, já que o plano de defesa da vila há muito está ensaiado pelo seu comandante.
João da Silva, trajado para combate, volta à torre de menagem e não tira os olhos do cavaleiro que encabeça a hoste: Juan Galindo.
Sabe de cor o português a que vem o castelhano. Adivinha-lhe o estado de alma, o olhar desafiante, a tensão de cada músculo do seu corpo, o desejo ardente de combate...
O aspecto imponente daquele homem condiz com tudo o que dele lhe contam. Vai, por certo, aceitar o seu desafio!
O comandante castelhano sente-se, por seu lado, observado e repara naquela silhueta imóvel, postada no alto da torre principal da fortaleza de Ouguela. Ali reconhece o mesmo homem que algumas vezes avistara junto à linha fronteiriça, até onde, por vezes, vem correr a caça.
Já muito perto do Castelo fica pasmado D. Galindo com um acenar amigável do seu opositor. E mais ainda quando percebe que o mesmo lhe indica que irá sair, sem escolta, ao seu encontro, para com ele chegar à fala.
«O português é homem valente, não há dúvida. Ele e os seus homens estão ali para assaltar Ouguela, pelo que esperava tudo menos aquela recepção».
E fica curioso, cogitando sobre as intenções de João da Silva. «Vindo sem escolta, para palestrar, é porque se dispõe a propôr-lhe qualquer acordo. E sabe que ele é homem para ouvir. O plano do cerco ao castelo está arquitectado e pode ser executado a qualquer momento, pelo que não há pressas. Deve ouvir o que o alcaide português tem para dizer».
D. Galindo faz sinal ao seu Capitão da guarda para que mande parar a tropa.
Homens e animais estão sequiosos, cobertos de pó, recebendo com agrado a ordem de suspender a marcha.
Depois, ele próprio, dá instruções muito precisas: «Voy al encuentro del comandante portugués que desea encontrarse conmigo a solas. Hasta que yo vuelva mantendréis esta posición y bajo ninguna circunstancia la abandonaréis.»
***
Chega o castelhano junto ao morro da vila no preciso momento em que o português sai fora muros. Estão desarmados os dois homens. As armas por agora não vão ser necessárias.
Soldados e população apinham-se entre ameias para assistir ao encontro que também é seguido com atenção pelos de Alburquerque.
Estancam os dois cavaleiros a menos de dez metros um do outro e olham-se com respeito. Parece que ambos aprovam o inimigo que têm pela frente.
Juan Galindo quebra o silêncio: «Señor Don João da Silva, mis intenciones son claras. No he entrado en tierras portuguesas para venir a pasear. Estoy aquí por expreso deseo de mí reina y señora, Doña Isabel, para tomar a ciudad de Ouguela y devoverla a nuestro reino de Castilla. Sin embargo he recibido vuestro ofrecimiento y, antes de ordenar a mis hombres que ataquen el castillo, quiero oír vuestras palabras».
João da Silva ouviu impassível, o comandante castelhano, sem deixar escapar do seu rosto qualquer emoção. Depois, com voz calma e pausada respondeu: «D. Juan Fernandez Galindo, pois sei muito bem a razão da vossa vinda. Mas, aviso-vos, estais aqui em vão!
Não conseguireis entrar em Ouguela para cumprir o desejo de vossa rainha, a Senhora D. Isabel. A isso me vou opôr!
Estamos fornecidos de água e mantimentos com fartura, pelo que vos podemos massacrar ali de cima por longo tempo.
Mas sei que não sois homem para dar meia volta e regressar a Alburquerque.
Morrerá gente vossa e minha sem proveito para ningém! E eu tenho dentro da muralha gente simples, que nada tem a ver com as quezílias entre o meu rei e a vossa senhora Dona Isabel.
Por isso vos venho desafiar!
Proponho-vos um combate entre nós que ditará a sorte de Ouguela. Combateremos os dois com as nossas espadas até um de nós morrer. Os vossos soldados e os meus, assim como o povo de Ouguela, serão testemunhas do que acontecer».
D. Galindo percebe a determinação do português. E concorda, para si, que é empreitada difícil assaltar o castelo de Ouguela. A proposta de João da Silva é prática e revela, sobretudo, grande nobreza de carácter. Que tudo se decida com a morte de um deles.
«Haré mías vuestas palabras», respondeu Don Galindo. «Y si Dios quiere llamarme hoy a su presencia, tendré mucha honra y orgullo de morir en vuestras manos».
***
Naquele fim de tarde de seis de Maio de 1475 encomendam-se os dois capitães a Deus na Igreja de N.ª S.ª da Graça. Cada um reza por seus sentimentos mais íntimos, oferecendo o sacrifício de sua vida por aquela nobre causa que concordam defender.
Terminada a oração abraçam-se os dois cavaleiros, mais parecendo irmãos de peito que inimigos, pedindo perdão um ao outro, como o algoz à sua vítima.
Álvaro Pais e Miguel Escobar, lugares-tenentes dos alcaides, ainda meio perturbados com o rumo dos acontecimentos, fazem os últimos preparativos para a liça. Escolhem um terreiro apropriado, com bastante espaço para dispôr tropas e gente curiosa.
Estão prontos para combater os dois homens. Juan Galindo beija o filho Pedro, balbuciando qualquer coisa que ninguém ouve mas todos pressentem o que lhe terá segredado.
Este combate decorre em silêncio! Talvez a léguas se oiça o som das espadas cruzando ares, cintilando uma sobre a outra.
Arremetem uma e outra vez os dois cavaleiros, ferozmente, defendendo cada escudo as tremendas espadeiradas desferidas. O castelhano mete a espada na axila direita do português, que a tinha a descoberto para infringir mais um ataque. Dobra-se de dor João da Silva mas logo recupera forças e atira potente estocada a D. Galindo que é atingido, gravemente, no baixo ventre.
Golpe atrás golpe ferem-se, mortalmente, João da Silva Português e Galindo Castelhano. Este está inerte, abraçando o pescoço da montada não recobra fôlego. João da Silva apeia-se, vacilando, vai com muito custo até junto do seu companheiro de lide e, levantando-lhe a viseira, compreende que o duelo está terminado. Imediatamente cai exausto, inanimado.
A hoste invasora regressa a Alburquerque, agora em cortejo fúnebre, transportando o cadáver do 3.º Mestre de Alcântara.
Em Ouguela, vinte e oito dias depois, morre o nobre alcaide João da Silva devido aos graves ferimentos recebidos da espada de seu valente adversário.
A vila continua portuguesa.
AC

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