Monday, January 17, 2011


O Natal de S. Bendito
By Sir Anthony Clayton


Sua Excelência

Só Traste isolara-se na residência oficial para enfrentar o Natal.
Um ou outro ministro ainda quisera convencê-lo a passar a noite da consoada com a família ministerial mas a resposta fora lacónica: «a solidão do poder é a melhor companhia que posso ter». O Teixoeira dos Prantos, ministro do assalto aos pobres, disse entre dentes: -o raio que te parta…, mais ao poder…, daqui por uns dias, quando o Cabaço te tirar o tapete debaixo dos pés, vais ver como elas te mordem…
Sua Excelência apenas convidara uma ministerial cabeça para passar essa noite no palácio de S. Bendito: o seu ministro da propaganda, e convertido à ideologia do chefe, Dr. César Augusto SSilvão, mais conhecido nos meandros da política por Augusto “contratropedeiro”… ….mas o agora ministro dos quartéis tinha partido de véspera no submarino Tripente, para Trás-os-Montes. Só Traste ficara curioso e alarmado: «como pode este “pássaro” (neste caso peixe de água-doce) chegar de submersível a Bragança… … terá mandado construir uma ligação entre o Tejo, o Mondego e o Douro, sem meu conhecimento… era só o que faltava… lá se vão os ratatingues da República…».
A tropa do PS (Partido Só Trastes) também desafiara o chefe para ir meter o sapatinho na chaminé do palácio Ratão, por onde nos últimos anos tinham caído mais brindes do que estrelas há no céu (há anos de sorte). Mas o SG mostrara-se enfadado…: «ir aturar o Bicefalino… ou o Francisco Bexigoso… ou o manteigueiro do Lambão… ou o Silva Pederneira, grande macaquinho de imitação na moda de se pintar de grisalho… que maçada, não há pachorra…
Não…, vamos ficar em casa, gozando como manda a cartilha dos fortes…, dos génios da política…, dos com lugar marcado na História…, gozando o Poder pelo Poder: o poder de acabar com os pobres matando-os à fome…; o poder de terminar com essa invenção antiquada e retrógrada do abono de família e de desmamar as criancinhas dos leites achocolatados, provado está que fazem mal à saúde…; imposto para nascer é o que cada um deve passar a pagar para ocupar um lugar no país (como dizia um grande estadista: “não perguntes o que o país pode fazer por ti mas diz antes o que tu podes fazer pelo país”)…; o poder de acabar com esse vício mensal que são os salários…; o poder de acabar com o emprego de norte a sul, acabando de vez com sindicatos e manifestações de malandros que não querem é fazer nenhum e só perturbam a ordem e tranquilidade públicas; o poder de cortar com os orçamentos dos hospitais e dos centros de saúde, para não falar do famigerado medicamento, onde o desperdício é tamanho que acabar com ele é não só um balanço positivo na conta da despesa pública, mas também ir à raiz quadrada do problema, isto é, acabar de vez com a doença – sem medicamento não há doença…, acabam-se os doentes…, passamos a viver num Estado cem por cento saudável…; enfim…, o poder de pôr um ponto final no fartar vilanagem que é o ensino… …acabando com os professores acaba-se com o imbróglio das avaliações… …e com as manifes de 120 mil a desfilar na nossa Avenida da Liberdade… …e com a tempestade à volta do estatuto do aluno… …façam como eu que tirei um cursilho por correspondência aos domingos de manhã que me dá para assinar projectos!».

A noite adivinhava-se gélida…, chuvia…, lá fora o vento investia contra as vidraças das janelas a um ritmo alucinante, dando por vezes a sensação de alguém a deambular pelo soalho do andar superior da mansão.
Só Traste estava só, mandara desligar os telefones internacionais não fosse a Merccel ou o Sarkobruni lembrarem-se de lhe interromper a ceia com o Poder, gritando-lhe do lado de lá da ligação, com modos de mandões que tanto irritam sua Excelência: -é pá não há meio de acertares as “contas de diminuir” para convenceres os ratatingues…; e pusera no silêncio todos os seus telemóveis, pois o doido do tio de Cacais teimava numa visitinha com o primo pródigo, acabadinho de chegar da Chinatown… A família é o nosso pior inimigo…
Dispensara também assessores e adjuntos (superboys), entre eles o Ruy Pedra Sujares que partiu com a lágriminha ao canto do olho por não poder ficar ao lado do chefe em tão solene ocasião. Mas deixara-lhe de prendinha de Natal um contrato apalavrado com os castelhanos da Asirp, detentores da TVINVISTA, o que tornava bastante mais fácil correr com o incómodo “Casal”… -Como o chefe vai delirar… quem não delirava ao ver-se livre do dueto de línguas viperinas!
Até os assessores de limpeza e catering (vulgo serviçais/criados), brigada que assegura a rotina do dia a dia no Palácio de S. Bendito, sua Excelência quis vê-los sair antes da sete da tarde. Apenas pedira a um destes que lhe deixasse, em cima da secretária de trabalho, uma manta da serra e um candeeiro a petróleo, «POIS ERA NECESSÁRIO POUPAR ENERGIA PARA CONTROLAR O DÉFICE».
Também lhe tinham deixado, os fiéis serviçais, uns pastelinhos de bacalhau sobrados do jantar de há três dias e um bule de chá de ortigas que sua Excelência tanto apreciava.
Só Traste semi-riu, pois, dada a seriedade do cargo que ocupava, perdera o jeito de dar uma gargalhada franca e aberta, e sorrir era uma expressão humana de bom gosto que nunca assomara à sua moldura facial…; naquela hora de dificuldades acrescidas e desespero nas famílias, semi-riu dessa devoção, que sabia forçada, dos colaboradores que logo no primeiro indício de mudança de rumo seriam os primeiros a atirar-se borda fora.
«Finalmente…, orgulhosamente sóóóóóóóóóóóó…» ecoou o seu grito tarzânico, inesperado, por todo o palácio de S. Bendito. As vidraças das janelas tremeram com uma forte corrente de ar que se gerou e tomou conta dos interiores…, e outro eco medonho foi devolvido para as entranhas da terra.

A Criatura

O eco medonho, que penetrou as entranhas da terra, percorreu todos os recantos de uma cripta subterrânea do palácio de S. Bendito, até então desconhecida dos sucessivos ocupantes, com uma energia tal que perturbou o sono profundo de uma intrigante Criatura já de todos esquecida. Sacudindo o pó de tantos anos com umas enormes asas de morcego, revelou, no meio do breu que pintava as imediações, o seu traço e fisionomia particulares: cabelo branco como a neve que nem a lonjura do tempo desalinhara, fácies pálida, tal e qual como a palidez da morte, olhos encovados de olhar fixo e pálpebras ressequidas, injectadas de vermelho sangue, nariz adunco e afilado, lábios finos como a lâmina de uma adaga florentina, saindo da boca dois dentes caninos quase a tocar o contorno inferior da mandíbula…, e quanto ao mais…, de traje preto, com casaca coçada do tempo, calças de cerimónia fúnebre e nos pés calçadas umas botas pretas destoando do restante aprumo por não serem a condizer com a vestimenta, sobretudo por estarem em impecável estado de conservação.
Ao ser incomodada, pelo eco, em seu descanso eterno, a Criatura, que já tivera um apuradíssimo sentido da audição, estrebuchou repetidamente com esgares horripilantes, levantou-se da poeira que cobria o fundo do seu poiso, dando sinais de ter sido lançada de novo para a vida, isto é, ressuscitada, pois de imediato se perguntou: «onde é que eu já ouvi isto?!?».
Esta Criatura alada com asas de morcegão, dente afiado e botas reflectindo o brilho da própria escuridão, tinha retornado de um descanso mortuário, não se dando ainda conta da energia e poder que acumulara durante 40 anos de clausura na cripta subterrânea do palácio de S. Bendito.
A sua voz de falsete, cuspida do fundo das entranhas, lançando a pertinente questão «onde é que eu já ouvi isto», fez tremer intensamente toda a estrutura da mansão de S. Bendito, como se de um violento tremor de terra se tratasse.

Encontro de gerações…

Só Traste tinha andado a meter a penca depinocada em todas as salas, salões, saguões, águas-furtadas, portas e portarias, corredores e torres de vigia, para evitar ter surpresas nocturnas e assegurar-se que mais ninguém, a não ser ele sua Excelência, respirava no palácio de S. Bendito. E ouviu a voz de estridente falsete que partira dos fundos do palácio, o que lhe desencadeou um suadouro pegajoso por todo o corpo e um mal estar interior que nunca experimentara. Chamou pelo nome de dois ou três funcionários que tinha conseguido memorizar e a resposta veio-lhe do seu interior: nesse fim de tarde despedira todo o pessoal do serviço!? Depois lembrou-se da ajuda preciosa que seria ter o SSilvão por perto, ele era o seu ministro dos quartéis…, só que o ministro tinha marchado a caminho de Trás-os-Montes no submarino Tripente… …ó minha mãezinha me valha… …suspirou assustado! Só Traste disse para si mesmo se não teria sido imprudente a decisão de passar o Natal na mais completa solidão(?). Sentado na secretária do despacho, aconchegou-se o melhor que pôde com a mantinha da serra, disposto a passar em revista os seus debates quinzenais com os insuportáveis deputados da oposição.
Ligou a TV, onde já acondicionara uma gravação com a nata dos seus discursos e réplicas no hemiciclo. Mas eis que uma campainha toca algures, interrompendo o que se adivinhava ser uma noite tranquilamente narcisista. «Quem se atreve a incomodar-me… …hum deixei um télélé ligado… …deve ser o Armandino com mais uma histórica da TVINVISTA… …a gaja não se cala…». Chekados os telemóveis, estavam todos desligados, o trim…trim… voltou a soar! ÓÓÓ… …é a campainha da porta principal! Só Traste franziu o sobrolho, como só ele sabe, com alguma irritação habitual em homens de estado, em ocasiões deste tipo, e accionou o intercomunicador. «Quem é… … não está cá ninguém… … esta voz é uma gravação inventada no parque tecnológico!». Só Traste ficou apreensivo, colado ao auscultador. E ouviu a voz que falava por todos: -somos nós senhor… … os pobres de Portugal… … os desempregados… …os esfomeados… … os adoentados… …os pais e as mães deste país… …os nossos filhos têm fome, pedimos uma ajudinha, um abono para um Natal mais quentinho… …sabei senhor que aqui fora está um frio insuportável que nos gela o sangue…
Só Traste foi então arrancado desse turpor, em que ficara agarrado ao intercomunicador, por um toque áspero e frio que o percorreu de cima abaixo e da frente para trás, quase lhe petrificando as vísceras internas. Sua Excelência queria…, mas não queria… voltar-se, tal era o pânico do seu estado de alma a partir do momento em que o toque gélido lhe pressionara o ombro. E para complicar essa situação incómoda, verificou que lhe era impossível movimentar a perna direita… e a esquerda também… e os braços sempre tão activos e decididos, eram agora pertença de uma estátua de pedra… Apenas a sua cabeça conseguiu rodar ligeiramente sobre o pescoço, na direcção em que tinha sido tocado…
Uma Criatura, de olhos encovados e trespassantes, estava postada atrás de si, deixando-o em estado de petrificação absoluta quando a sua Excelência se dirigiu com voz esganiçada de falsete: -então o moço é quem atende à porta… … o porteiro?
Só Traste, tal como não movimentara uma única articulação, também ficara paralisado das cordas vocais, emitindo somente um quase imperceptível «eheheheh…» a tão cruel pergunta.
A Criatura voltou a interpelá-lo, para seu pavor: -então o rapaz é mentiroso…, gosta de enganar o povo…, sabe que é muito feio mentir…, principalmente ao povo… E rematou: -aqui eu digo sempre presente!
Felizmente Só Traste conseguiu sonorizar aquele seu potente grito tarzânico, sem o que teria ido desta para melhor. Gritou tanto… tanto… tanto… que, todos os da casa, lhe diagnosticaram um grave estado de nervos…, quase à beira da loucura.
«Acordara de um sonho mau…, sem dúvida…, mas estivera frente a frente com “ele”… a personificação do Poder…»

PS: Diga-se, em abono da verdade, que qualquer outro político à portuguesa teria sucumbido perante tal visão!