O massacre de Houla
Entre muitos mortos contam-se trinta e duas crianças, provavelmente de
uma escola onde aprendiam a arte inofensiva de ler e de brincar.
Esta fotografia, um testemunho arrepiante, é das "menos"
chocantes de uma série delas que vi. Agora discutem quem puxou o gatilho!
Nós nada podemos fazer e amanhã as imagens apagam-se..., como sempre.
Encontro em zona de guerra, ou
outra história de David e Golias
Ele é real…, o nossos caminhos cruzaram-se numa viagem que me levou a
uma cidade síria, algures no centro do país, chamada AL - Houla. O seu nome é
Mohamed, descobri o seu par de olhos expressivos entre outros caminhantes
vagueando numa estrada de pó com destino incerto. O rapaz aparenta mais idade
devido ao seu corpo franzino, tez escura e à desenvoltura com que se atravessa
no caminho suado, tentando impingir a mercadoria por uma moeda. Certifiquei-me que tem dez anos e o mesmo
número de elementos da família à sua responsabilidade para alimentar. O pai foi
morto por um míssil lançado de um MIG 29, tal e qual como um elefante esmaga
uma formiga, sem um ai, com pedaços de corpo irreconhecíveis que puseram
perante o seu par de olhos vivos e tristes, para reconhecer. Hesito em
continuar a escrever este relato…, ou paro agora, ignorando a bebida amarga que
comprei por uma moeda…, ou vou ter que negociar forças para percorrer o trilho
extenuante e sem sentido que me levou a Mohamed.
Em Houla a palavra Alá é dita mais de mil vezes por dia pelas bocas esfomeadas
de dignidade dos seus habitantes. Mas Deus partiu há muito para o seu refúgio
eterno no paraíso, longe das ruas mal cheirosas com casas esventradas, onde
agora jazem famílias por completo.
O que faria Deus se continuasse por estas paragens?..., boa pergunta
para colocar a quem fez daquela terra a sua, e à qual eu, como homem e ser
pensante que sou, não consigo responder, duvidando mesmo que alguém o consiga
fazer.
Ao observar a longa fila de trinta crianças mortas por uma bomba que
explodiu em cima da sua sala de aulas fico petrificado, olho o rosto das que
ainda o têm, lendo em todos a mesma pergunta para a qual, mais que certo, Deus
não tem resposta: porque nos mataram quando estávamos apenas a brincar ao nosso
jogo favorito?
Mohamed devia estar na escola… mas não estava… porque anda angariando
o sustento para a mãe, duas avós e os sete irmãos mais novos, por caminhos e ruas sinuosas, onde o cheiro a
pólvora e a carne queimada, pelas explosões, se entranha teimosamente pelas
gargantas. Ele aprendeu o segredo de um chá, não descobri ainda se transmitido
pelo pai ou outro parente mais próximo, que alivia essa penosa secura das gargantas,
ainda mais tormentosa depois do corte de todo o tipo de abastecimento à cidade…,
e faz dele o seu negócio.
Mohamed pisca-me o olho e acena-me com a chaleira do outro lado da
estrada. Aproxima-se do carro atravessando a via e encosta-se à janela que está
aberta. Apesar de me saber estrangeiro, fala-me com um sorriso aberto de bom
vendedor. Não entendo uma palavra de árabe mas gestualmente traduzo que é um
copo de chá por uma moeda. Aceno que sim e ele saca do bolso um copo universal,
o que me arrepia… seja o que Deus quiser… por estas bandas é mais certo morrer
como alvo de qualquer arma mortífera, do que pelo efeito patológico de uma disenteria.
Ao longe anunciam-se sirenes em grande azáfama, pouco antes uma explosão
tremenda fora a origem de um sopro que me atordoara os tímpanos. Faço-lhe sinal
para entrar no carro e sairmos rapidamente daquela zona de perigo. Mohamed
aceita a boleia sorridente, leio nos seus olhos que para onde quer que nos
desloquemos o perigo irá ou virá ter connosco. Traduzo os seus gestos: «Alá é
grande… morte à “shabiha”».
A terra solta constantemente um cheiro intenso a ódio que se entranha
nas almas que andam por este mundo, para não mais as largar. Em Houla, onde o
caos reina a seu belo prazer, as necessidades mais básicas, quanto vitais, não
existem por aqui. Deslocamo-nos na periferia da cidade, onde uma janela com
vidros ou uma parede de pé são excepção. Subitamente somos engolidos por um rio
humano em clamor. É o funeral dos mártires de um bombardeamento a um bairro do
centro da cidade, diz Mohamed. Passam seis caixões por cima do carro, levitando
sobre as cabeças da multidão enfurecida. Como surgiu, num ápice, assim
desaparece.
Mohamed faz-me sinal para parar… e sairmos rapidamente do carro. Ele
ouviu antecipadamente, com certeza por hábito adquirido em muitos e longos
meses de guerra, o roncar sibilante de uma patrulha de caças MIG 29. Abrigamo-nos
numas ruínas onde Mohamed entra sem hesitação.
A chaleira, apesar da correria, mantém-se firme, sem perda de uma gota do
negócio. Alguns segundos depois o ruído ensurdecedor dos aviões e uma explosão
avassaladora fazem-me pensar que o tecto do firmamento vai desabar. Uma onda de
fumo negro ergue-se da amálgama de ferros retorcidos esculpidos pela precisão de
um míssil. Dou graças a Mohamed pela sua perspicácia e ouvido apurado.
É muito arriscado para um jornalista estrangeiro andar por estas
bandas. No automóvel, agora transformado num monte de destroços enegrecidos
pelo fogo, pereceu material de reportagem valioso. Ao pescoço tenho pendurada
uma das máquinas fotográficas que, por sorte, arrastei comigo. Mohamed faz-me
perceber com um gesto do polegar esquerdo para cima que é muito fixe a Olimpus
estar intacta. Dá-me espaço e pousa para um disparo com a chaleira em grande
plano… e o seu sorriso…, o seu sorriso inocente atirado para o campo de
batalha.
Sigo o pequeno herói chefe de família por um labirinto de ruelas
atafulhadas de destroços de casas, ainda há bem pouco tempo habitadas, mas às
quais foi lançado o anátema de albergarem terroristas. Cruzamo-nos com mulheres
que choram a destruição de todos os seus haveres. Procuram nos escombros
calcinados algum objecto mais valioso…, uma recordação de família.
“Indiferente” ao sofrimento dos seus compatriotas, Mohamed a todos oferece chá
com um sorriso nos lábios, a troco de uma moeda… obviamente. Faz-me compreender
que à noite, quando chegar a casa, ou ao que resta dela, quer ter o suficiente
para alimentar a família. Vou batendo fotografias, como esta que acabo de
fixar, da recolha dos cadáveres de uma mãe e dos seus dois filhos. Mohamed
salta de espaço em espaço, sobre todas as desgraças que se atravessam no
caminho…, e eu dou comigo a pensar que não deve ser muito diferente viver no
“inferno”.
Vemos uma bola de fogo ao longe, seguida de um estampido violento, que
nos quebra por segundos a audição. Uma nuvem de fumo negro desenha um
cogumelo…, Mohamed fica agitado, gesticula e acelera o passo, a ponto que tenho
dificuldade em segui-lo. Fico a saber que o fogo atingiu a zona da sua casa.
Ele teme pela mãe e pelos irmãos.
Felizmente, hoje, todos estão bem.
Mohamed dá-me autorização para fotografar a família reunida…, uma
recordação deste nosso breve encontro em zona de guerra.
AC
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