Saturday, October 07, 2006


«Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
O teu encantamento!»
(Miguel Torga/Poesia Completa: Mar)


Um Filho do Mar
Teodoro Algarvio tinha estampada no rosto a profissão que exercia desde há sessenta e quatro anos.
Com apenas seis anos começara a ajudar o pai nas andanças da pesca e rapidamente aprendeu a engodar, a ajeitar anzóis com isco para pescar à linha, a remendar as redes, a escolher os melhores sítios para colocar os aparelhos e mais um sem número de segredos dessa vida feita no mar.
A cara queimada e enrugada da frequente exposição ao astro, encimada por um boné de xadrez carcomido pela maresia, atirado sobre os olhos, emprestavam-lhe um ar enigmático de quem tudo vê e não é visto.
Algarvio não era nome ou apelido mas alcunha que lhe ficara do pai, noutros tempos vindo dos lados do Algarve.
Ele, alentejano dos quatro costados, por incrível que pareça, nascera no mar numa noite em que a mãe, já em adiantado estado de gravidez, quisera acompanhar o seu homem na recolha dos enganos da lula. Foi nessa noite quando abriu as narinas para a primeira golfada de ar vital que foi inundado, até ao íntimo do seu pequeno ser, por aquele cheiro ao mar que amou desde então.
Descobri a pequena aldeia de pescadores num daqueles passeios sem destino. Ali o tempo tinha feito uma pausa e era agradável permanecer.
Uma longa rua de empedrado bem polido era amparada por casas baixas, quase todas de velhos lobos do mar, terminando a uma centena de metros do oceano. E havia um terreiro, contornado também por algumas casas, que servia ora para campo de futebol da miudagem, ora para o jogo do chito depois da refresca com umas cervejinhas ou simplesmente para dar meia dúzia de lérias e ver chegar os pequenos barcos da faina.
Aluguei um quarto em casa de gente simpática, com janela para o porto e para a ilha com seu forte seiscentista, que vi pela primeira vez.
Um turbilhão de sensações de prazer tomou conta dos meus sentidos sem qualquer resistência.
A aldeia parecia estar suspensa, assente em avantajado promontório que ali avança sobre o mar. E daquele terreiro, quase sempre animado de gente, descia-se para uma pequena enseada natural que era o porto de pesca.
Logo numa primeira investida exploratória, no dia da chegada, cruzei-me com o ti Teodoro que nessa tarde acabara de chegar da pesca. Não estava mais ninguém no porto. Descalço, com as calças arregaçadas até aos joelhos, cigarro colado ao canto da boca, já tinha amarrado o barco ao cais e feito o transbordo do produto da pescaria. Entretinha-se na limpeza da embarcação.
Aproximei-me e cumprimentei o pescador: –boa tarde senhor..., e pelos vistos também foi boa a pesca!
Uma boa tarde seca e um olhar de relance na minha direcção, escondido pela pala do boné e impedindo-me de lhe ver a expressão do rosto, desencorajaram-me a meter mais conversa. Fiquei a vê-lo carregar o saco às costas, subir a ladeira em direcção à aldeia, entrando no pequeno bar que ficava no cimo da íngreme rampa, como que a cavalgar o porto.
Nessa noite, embora cansado da viagem e com o corpo amolecido por tantas orgias com a natureza, aproveitando o pretexto de tomar uma bica, resolvi meter o nariz no Café Paraíso, assim se chamava o pequeno bar que postado à entrada do acesso para a enseada portuária, tal e qual sentinela alerta, vigiava invariavelmente quem entrava e quem saía.
Aproximei-me do balcão, bem iluminado por um candeeiro petromax que deixava o resto da sala na penumbra, e tomei o café de costas viradas para a luz, com disfarçada intenção de observar o ambiente.
O recinto era atarracado, apenas com duas mesas, uma de cada lado e algumas cadeiras dispersas. À esquerda do balcão havia uma porta por onde era expelido um ruído, ensurdecedor, que denunciava ser a casa dos matraquilhos. Pelas paredes viam-se pendurados um emblema do Benfica e outro do Sporting, muito amarelecidos, alguns calendários com insinuantes mulheres nuas, fora de prazo, tanto ao gosto das tascas portuguesas, um diploma a atestar o proprietário como “exímio tirador de imperiais” e um azulejo emoldurado, onde se lia a seguinte quadra: não venhas cantar o fado/que já não há dinheiro,/pois acabou-se o fiado/durante o ano inteiro.
Sentado numa das mesas lá estava o velho pescador, provavelmente desde que o vira chegar do mar, dispondo ao acaso, no tampo gasto da mesa de madeira, as pedras de um jogo de damas.
Topou que o observava.
Dirigiu-se-me de surpresa, com o mesmo tom seco dessa tarde, mas desta vez de olhar espevitado, bem à mostra, e ar dominador da situação: «oiça lá, vomecê sabe jogar às damas?»
Apanhando-me desprevenido, não me perguntou o nome ou de onde era natural, questões por onde se começa qualquer conversa com gente desconhecida, mas logo despejou aquela interrogação sacana – se sabia jogar às damas – à qual respondi com ingénua franqueza: -olhe, por acaso não sei... ou melhor, jogo mal, porque apenas sei que as pedras são brancas e pretas... e andam uma casa de cada vez... da táctica do jogo não percebo nada.
Ele tirou o boné da cabeça, coçou a careca com ar espantado e, depois de prolongada passa no cigarro, exclamou com incredulidade: «qual táteca qual quêi... atã se nã sabe jogar às damas o qu’é que vomecê sabe fazeri?»
Dito isto perante a pequena assistência do bar, riu-se à descarada com o meu ar de atrapalhação pela ignorância de não saber jogar às damas.
Com o mesmo repente da tirada inicial convidou: «sente-se aí qu’ê ensine-lhe.»
Ri-me também e aceitei a oferta que me fez amigo de Teodoro Algarvio.
O jogo de damas deu início a inesquecível convivência com este pescador que me ensinou, entre lances de como se comem três, os segredos do mar e da pesca, histórias e lendas fantásticas da ilha, com piratas e corsários metidos pelo meio, e os recantos inimagináveis da bela costa alentejana.
Eu ouvia, quase sempre, mais do que falava.
Numa ida à ilha, inesperadamente, contou-me o seu primeiro encontro com o mar. Recordo a convicção e orgulho que empenhou nas palavras: «devo mais a estas águas que a meu pai e a minha mãe..., quero tanto a este mar como aos meus filhos..., aqui vim ao mundo e me fiz homem, daqui levei sempre o sustento para a família..., agora estou velho e aqui quero morrer...»
Ficou em silêncio, pensativo, a olhar o mar sem fim.
Voltei em outro ano com ideia de ficar por uns dias e desejo de rever o meu amigo Teodoro.
A terra tive dificuldade em reconhecê-la – prédios aberrantes, parques de campismo, restaurantes atafulhados de gente... e até caixas de multibanco.
O pequeno bar do porto fora engolido por qualquer coisa mais parecida com gigantesca gaiola de piriquitos.
Soube, por um companheiro do jogo de damas, que Teodoro Algarvio saiu numa noite de Lua para o mar e por lá ficou.
O seu barco foi encontrado junto à ilha que o viu nascer...
AC

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