Wednesday, October 04, 2006

OUTONO
Cai a primeira chuva a acompanhar uma trovoada, anunciando que o Estio foi para outras paragens – para o ano talvez volte.
Com o Verão de S. Martinho pode a gente bem!
O ar traz o cheiro agradável e íntimo da terra molhada, que em breve vai iniciar um novo ciclo com a mesma coragem e determinação que cada ano imprime ao fantástico milagre da vida.
O ribombar ensurdecedor de um trovão pressagia que a tempestade está iminente. O cão enfia-se na casota – inquieto – lugar que apenas frequenta quando tem medo.
A água entorna-se dos beirais lavando o pó acumulado nas calçadas. Nas bermas das ruas formam-se pequenos rios de curso imprevisto, à procura de um sítio para desaguar.
Gotas dispersas rolam pelas vidraças das janelas. Olho. A uma delas uma velha e um menino espreitam a chuva como coisa nunca vista. A primeira que ele vê, com certeza. São bem o retrato desta estação – a vida no ocaso traz ao colo a vida no começo.
Deambulo pela cidade gozando o frenesim provocado pela intempérie. A chuva forma uma cortina cerrada que plana sobre o chão, criando a ilusão de que a Praça flutua.
Gente corre daqui para ali, aos solavancos, entre portas e arcadas, evitando a molha, como se a bátega conspurcasse corpos e almas.
À pressa recolhem-se mesas de vendedores ambulantes para salvar a mercadoria. O ardina atira uns plásticos sobre a banca, resguardando as últimas notícias.
Uma criança, com a pressa que a mãe leva, deixa cair um pacote de pipocas acabadinho de comprar. Chora. O berreiro intenso esvai-se, abafado também pelo bater de portadas que se fecham. Os pardais, felizes, agradecem sacudindo a água das abas da farpela. Um gato espreita emboscado na entrada de um pátio, matreiro, a ver se pode tragar algum.
Um pedinte estende a mão encardida à procura de uma moeda, que a actividade não se compadece com as condições atmosféricas.
Os zimbórios da Sé brilham batidos por alguns raios que cruzam o céu. O Sol, a medo, espreita por uma aberta das nuvens e logo aparecem as sete cores do arco íris.
No Rossio nem vivalma, que o sítio é desabrigado. Aqui, em outro tempo, uma carga de água, assim, frustrou o espectáculo de uma queima da malvada inquisição. Por coincidência cruzo-me com um cortejo fúnebre, que a morte escolheu um dia a condizer consigo. Penso que deve ser mais difícil partir num dia de céu limpo.
As últimas andorinhas fazem voos rasantes, acrobáticos, em despedidas até à próxima Primavera. Dentro em pouco estão aí as cegonhas.
Foi-se o mau tempo, inopinadamente, como chegou. O Sol volta a brilhar e com ele a cidade acorda pela segunda vez.
O enxame humano torna a fervilhar pelas vielas, agora sem pressas.
Passa um autocarro apinhado de crianças que regressam do primeiro dia de escola.
Pelo aroma localizo a rua onde o homem das castanhas assadas volta a montar o estaiminé. Remexe o fogareiro de barro que lança castelhanos pelos poros – "são a dez tostões a dúzia e toma lá mais duas porque és bom rapaz".
Não tarda muito, nas tascas faz-se a prova do vinho novo – memórias da adega da casa de meu avô, com grandes talhas, umas de branco, outras de tinto, à medida do paladar dos fregueses.
Um dia destes a natureza veste-se de dourados inigualáveis – riqueza que nos é oferecida sem contrapartidas.
O Outono bate à porta!
AC

No comments: