Investigação na Praça do Teatro
Na
Praça do Teatro a azáfama das máquinas escavadoras dá origem a uma cratera que
mais parece ser o efeito da queda de um engenho explosivo de grande potência.
As obras, que têm como fim a construção de um parque de estacionamento
subterrâneo, em zona de influência do centro histórico, estão ao abrigo dos
mirones por uma vedação cerrada de madeira.
Subitamente
o ruído ensurdecedor dos motores em acção deixa de atentar contra os tímpanos
dos transeuntes e a coluna de pó que entra pelas frestas das janelas, a alguma
distância, acama-se paulatinamente marcando todos os recantos com resquícios da
sua presença.
Ao
princípio da tarde o arqueólogo chefe da Universidade é visto entrar para a
zona das obras, vestido a rigor como qualquer engenheiro, sinal de que uma
ruína, talvez restos de uma estrutura antiga foi posta à luz do dia pelas
escavações.
Pelas
onze e trinta da manhã uma secretária atendera uma chamada telefónica da parte
do empreiteiro que dirige a construção do parque.
«Está
lá..., sim..., estou..., ouve-se mal, estou no fundo do buraco...»
Do
outro lado da rede uma voz feminina, trocista, questiona: –e quem o mandou
meter-se no fundo do buraco?
O
homem, meio irritado, volta à carga: «estou no fundo das obras do parque..., em
frente ao Teatro..., o meu telefone tem pouca rede...»
–Agora
ouvi perfeitamente, apressou-se a informar a secretária, em que posso ser-lhe
útil senhor...?
«Minha
senhora, uma escavadora pôs a descoberto dois esqueletos que estão juntos,
quero dizer, na mesma cova..., não sabemos se há mais..., o manobrador fugiu
com o susto que apanhou..., depois todos rimos..., mandei suspender os
trabalhos até alguém entendido ver do que se trata.»
–Muito
obrigada, ouviu-se a voz desinteressada da secretária, com certeza habituada a
receber este tipo de recados, vou avisar o meu chefe, alguém... A chamada caiu
levando a voz do empreiteiro a ecoar pelas paredes da cratera – está...,
estou..., está lá...
A
cidade é um conjunto de estruturas que se foram sobrepondo no tempo, assentes
umas sobre outras, espreitando aqui e acolá algumas que ousam assomar-se através dos séculos.
Quando
o Professor Saturnino Viegas se dirige para a Praça do Teatro vai conversando
as suas divagações com as pedras dos muros e das calçadas, como é seu costume,
porque as pedras velhas e gastas por vezes devolvem opiniões sensatas, assentes
na experiência de longos anos passados.
–Já
muito me admirava que ainda não tivessem encalhado em meia dúzia de cacos
velhos, quanto mais não seja para cumprir a regra que é lei na “merda desta
cidade” – não se levanta uma pedra que não se destape logo outra mais antiga.
Depois
de passar a entrada da vedação de madeira o Professor Saturnino fica alguns
segundos imóvel, enquanto limpa os óculos de aros metálicos redondos que lhe
fazem os olhos ainda mais pequenos mas sem ocultar a aparência inteligente e
observadora que transmitem. Cofia a barbicha desalinhada e continua a fazer
comentários para si próprio. A escavação efectuada – emprega o termo por hábito
profissional para designar a abertura feita – tem uma profundidade maior do que
pensava. À medida que vai descendo por um trilho de pó, pouco seguro, vai
observando as fatias dos muros circundantes, ainda crus. Afloram vestígios de
casas da época medieval, cristãs e árabes, sem dúvida bem fora da cerca
defensiva dessa época. O que leva a concluir que estamos perante um arrabalde
muito antigo, onde cristãos e árabes viveram paredes meias – um espaço raro de
tolerância entre os dois credos.
O
homem que o arqueólogo palpita ser o empreiteiro veste um blaser com uma camisa
branca e calça clara bem vincada, que lhe negam o estatuto de assalariado e tem
um capacete de protecção de cor azul marinha em contraste com os amarelos dos
homens que o rodeiam. Encontram-se no topo sul da abertura gigantesca, já com
cerca de quinze metros abaixo do solo, olhando absortamente para o que deve ser
o achado que é motivo da sua visita às obras do parque de estacionamento.
Quando
pressentem a sua presença abrem um pouco o círculo que formam e o Professor
Saturnino Viegas fica frente a frente com o senhor Arantes Gaspar, empreiteiro
diplomado da construção civil, a quem os funcionários da firma construtora
chamam, por dá cá aquela palha, de senhor engenheiro. Quase encostada ao muro
do topo sul, protegida pela sombra que lhe forma uma espécie de cortina, vê-se
uma fossa estreita e pouco profunda que contém, à primeira vista, duas ossadas
humanas.
Depois
das apresentações formais e de um pedido de investigação acelerada do assunto,
pois a empreitada tem os minutos contados, o senhor Gaspar – considerando-se um
mecenas das coisas antigas – dá um jeito às mangas do casaco que abotoa
cerimoniosamente como se de uma inauguração se tratasse e aponta para o sítio a
que o arqueólogo dá toda a atenção desde que chegou.
Saturnino
Viegas repete o gesto de cofiar a barbicha desalinhada, denunciando um tique
que sucede quando os acontecimentos lhe absorvem por completo o pensamento,
enquanto se dirige ao outro de modo imperativo.
–Apenas
uma hora, senhor engenheiro, para recolha de algum material e tirar meia dúzia
de fotografias, apenas uma hora – sublinha, já envolto pela penumbra do seu
trabalho. O senhor Arantes Gaspar faz qualquer comentário descabido a que
Saturnino Viegas já não dá atenção, embora lhe responda: –sim, sim, deve voltar
a enterrar os mortos para que reiniciem o repouso que lhes estorvou.
***
No
gabinete do chefe do Departamento de Arqueologia da Universidade a área é
contada ao centímetro. As paredes estão tapadas de estantes apinhadas de livros
que Saturnino Viegas localiza um a um sempre que é necessário. Pelos cantos e
chão do aposento todo o cuidado é pouco para não danificar algum dos muitos
objectos antigos vindos de estações arqueológicas para investigação, depositados
sem qualquer ordem aparente mas o utilizador do gabinete movimenta-se no exíguo
intervalo entre as preciosas antiguidades como se ali nada existisse. Na
secretária de mogno, com tampo de vidro embutido, também há alguma confusão de
papéis e três ou quatro peças de cerâmica do calcolítico que contrastam com o
computador pessoal do arqueólogo.
Bem
em destaque no centro da mesa de trabalho estão por ordem dez fotografias a
preto e branco, tantas quantos os ângulos possíveis em que o Professor
Saturnino conseguiu fotografar a sepultura descoberta na obra do parque de
estacionamento da Praça do Teatro. E dispostos simetricamente, por baixo da
fiada de fotografias acabadas de revelar, vêem-se três peças ósseas relativas
aos restos mortais recolhidos no túmulo para fins de investigação, já que ainda
na sua presença, Saturnino Viegas assiste ao camartelo revolver o espaço
milenar que minutos antes tratara com admiração e respeito e confundi-lo com
toneladas de entulho retirado do fundo da obra.
As
fotografias confirmam as primeiras ilações da observação atenta feita “in
loco”. Trata-se de um enterramento árabe, pois os esqueletos encontram-se
posicionados de lado, com a parte facial do craneo orientada para Meca. Mas os
craneos estão numa atitude bizarra, dispostos entre a parte do esqueleto dos
pés dos mortos, sem dúvida ali colocados propositadamente. O Professor
embrenha-se nas fotografias, nos restos dos despojos humanos, na visão de
centenas de anos atrás...
O
tique de cofiar a barbicha instala-se..., não dá conta do corrupio de gente que
passa para as aulas ou outros departamentos da Universidade..., não ouve sequer
o toque insistente da campainha do gabinete, accionada por dois alunos que
desistem da espera e resolvem fazer a entrega de um trabalho para mais tarde.
Levanta-se,
acende um cigarro junto à porta envidraçada das traseiras da sala que dá para o
jardim da Universidade. O dia está bonito, o sol entra a jorros pelas vidraças,
a passarada anda num delírio com o cheiro da primavera. Saturnino não dá por
isso. Quando volta para a secretária discursa em voz alta, fixando os livros e
pedras velhas como se de uma assistência se tratasse. “A sepultura não
apresenta sinais de ter sido violada em épocas anteriores. O que significa que
os dois corpos foram decapitados, sendo as cabeças postas junto aos pés no
momento do enterramento, por alguém que respeitou a fé dos crentes. O exame
minucioso, quer no local, quer pelas fotografias, determina que um dos
esqueletos pertenceu a um homem com idade compreendida entre quarenta e
cinquenta anos no momento da morte, não mais, de estatura média – cerca de um
metro e sessenta e cinco de altura – e pelo estado de conservação dos ossos,
nomeadamente da cabeça do fémur recolhido, que não apresenta sinais de desgaste
ósseo importante, suscita a imagem de alguém que não utilizava a força física –
tinha homens que trabalhavam para si... podia ser um príncipe ou um rei...
O
segundo esqueleto em questão identifica uma mulher nova, talvez não tivesse
mais de dezoito anos, o máximo vinte e, curiosamente, tinha uma estatura um
pouco superior ao homem – cerca de um metro e setenta centímetros. Os ossos não
apresentam sinais de doenças e algumas peças dentárias existentes têm bom
estado de conservação, o que reflecte preocupação com a higiene pessoal, hábito
enraizado apenas em indivíduos de status social elevado. O pequeno fémur
retirado, de entre outros pequenos ossos depositados junto à bacia da mulher,
permite-nos concluir que estava grávida quando foi executada..., o que
transporta até nós um drama de grande intensidade e violência. Na cidade houve
grandes convulsões durante a ocupação árabe e ao longo dos tempos da
reconquista cristã. É importante datar o achado para que as conjecturas sejam
mais fundamentadas”.
Do
laboratório respondem ao fim de alguns dias que os ossos analisados têm cerca
de oitocentos anos, com uma margem de erro até oitocentos e cinquenta anos e
que o estudo genético vai demorar, pelo menos, mais...
Saturnino
Viegas já não ouve a restante informação dada pelo seu interlocutor.
Para
o chefe do Departamento de Arqueologia da Universidade os decapitados eram
seguramente parentes. Talvez marido e mulher..., príncipes muçulmanos...,
talvez pai e filha...
O
arqueólogo dá a última passa no cigarro que esmaga no cinzeiro de pé alto,
recosta-se no cadeirão flexível em atitude de repouso, fica em estado de
semi-hipnose seguindo o feixe de luz que atravessa o silêncio do gabinete e vai
atingir certeiramente um pequeno emblema heráldico, meio escondido numa das
estantes atafulhada de livros. Simboliza uma tragédia semelhante à que acaba de
fantasiar nesse tempo distante de há oitocentos anos...
…os
decapitados de Ebora.
AC
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