Sunday, July 27, 2008

Um negócio de miúdos...
(Mas o melhor do mundo são as crianças,: Fernando Pessoa, poema Liberdade)


Texto: Luis Galhardas
Ilustração: Paula Costa

O Tricas era o miúdo que eu mais admirava na escola.
Proibido de o acompanhar onde quer que fosse, foi, por ironia, meu companheiro de carteira.
Cara escanzelada, mas sempre sorridente, intrigava-me vê-lo andar descalço em dias gelados de Inverno, ou no chão abrasador do pino do Verão.
A sua fama de rufia e velhaquíce vinha de incursões frequentes a hortas e quintas onde, para completar a magra dieta caseira, sempre encontrava algo que trincar, fosse qual fosse a época do ano.
Eu próprio o entusiasmei, vezes sem conta, a fazer investidas ao laranjal de meu avô, que tinha as melhores laranjas do mundo.
Apesar de frequentemente lembrado que não me queriam saber em tão “má companhia”, raspava-me com ele sempre que conseguia iludir a vigilância familiar, para aventuras com que ainda hoje sonho.
Em dias quentes de Verão pisgávamo-nos para a ribeira do Alcaláte, onde sabíamos de um pego de águas transparentes, escondido entre silvas e juncais e protegido por escarpas rochosas, nossa praia privativa.
Aí, vestidos com a nossa inocência, tomávamos banho, apanhávamos rãs e comíamos amoras.
Invejava-lhe, sem maldade, a habilidade para descobrir ninhos, tirar grilos das tocas com uma palhinha, matar cobras e lacraus, e muitas outras artimanhas em que era mestre.
Certo dia desertámos das aulas, apesar de termos consciência plena que uma sova de réguadas seria certa. A curiosidade foi superior a tudo!
Voava um pequeno avião numa herdade próxima da vila, a fazer o tratamento químico.
Os dois nunca tínhamos visto uma aeronave. Combinámo-nos.
Na manhã seguinte, como de costume, encontrámo-nos na ladeira da escola.
Olhámos um para o outro, com ar decidido, e tomámos o caminho da Pipeira.
Em silêncio, mergulhados no roncar do motor, tivemos uma das melhores lições da nossa instrução primária: um homem que nunca soube quem era, surpreendido com a presença de dois catraios em bibe de escola, explicou-nos, tim-tim por tim-tim, o funcionamento do avião, numa elucidativa aula de aerodinâmica.
À tarde, de regresso à escola, irradiávamos felicidade. Apesar do que nos esperava.
Outro episódio rocambolesco viria cimentar definitivamente a nossa amizade nesses anos de escola.
Numa bela manhã de aulas da segunda classe, tinha acabado de me sentar ao lado do Tricas que me mostrou uma caixa de fósforos, com uma série de buraquinhos feitos numa das faces.
-O que tens aí dentro Tricas, perguntei entusiasmado com a surpresa?
«São dois grilos que apanhei ontem à tarde, no terreiro de S. Bento», respondeu-me.
Sugeri-lhe: -abre um pouco a caixa para ver se é verdade.
Ele deslocou ligeiramente a tampa e logo apareceram umas compridas atenas negras e o que se adivinhava ser a cabeça de um grilo.
-Eh! pá, mas não cantam, argumentei.
Ao que ele, filosóficamente, retorquiu: «os grilos para cantar têm que abrir as asas, para depois, em movimentos muito rápidos, produzirem o som do gri gri..., dentro da caixa não podem abrir as asas, por isso não cantam».
-E como é que tu sabes isso, inquiri pasmado?
«Tenho observado como o fazem ao sol, na entrada das tocas, antes de os apanhar», esclareceu.
Eu, que há muito sonhava ter um grilo numa gaiola, logo engendrei uma troca.
Tinha em casa uma caderneta de cromos, cuidadosamente colados, versando sobre as “Maravilhas do Mundo”, mais entretenimento de minha mãe, e que ficara preenchida há dias.
A idéia surgiu-me como um relâmpago: -olha, troco a caderneta das “Maravilhas do Mundo”, que já está cheia, pelos grilos.
O Tricas arregalou os olhos, mais brilhantes que nunca, e não hesitou. Em casa não havia dinheiro para sapatos..., para comidinha sabia-se lá..., quanto mais para cadernetas e cromos!
Efectuou-se a troca no recreio do almoço, ficando as partes felizes com o negócio.
À noite, quando minha mãe teve a infeliz vontade de querer passar os olhos pela caderneta, tive de vomitar o sucedido, sob ameaça de castigo severo.
Mensagem imediata, no dia seguinte, para o senhor professor, veículada por minha avó, também professora na escola.
De nada valeu, diga-se em abono da verdade, ter esclarecido que a ideia tinha sido minha.
Após exemplar sessão de réguadas, sendo mais aviado o Tricas e mais poupado eu, por motivos óbvios, diante de toda a classe tivemos que desfazer a inocente transação.
Lágrimas a correr em fio e as mãos a arder, sentei-me na carteira, não conseguindo encarar o meu compincha.
Ouvi-o apenas dizer: «não chores, os homens não choram!»
Nesse dia à saída, quando descíamos a ladeira da escola, sem trocar palavra, depositou na minha mão a caixa preciosa.
«Toma, são teus... disse... dou-te os grilos.»
-Mas eu não te posso dar a...
O Tricas não me deixou completar a frase: «eu não quero a caderneta, não é disso que eu gosto...
um dia destes vamos à quinta do teu avô: -o que eu gosto, mesmo, é comer uma daquelas grandes laranjas da baía!

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