Sunday, October 07, 2007














Residência: passagem de nível com guarda...


Há dias cruzei-me com um “maltês” instalado com sua pobre trouxa, algures na quase reformada passagem de nível, esquecido, quem sabe, por comboio que ali passou, entre um tempo que não chegou e outro tempo que nunca chegará.
E assim estava: com ar cansado de longa caminhada, encostado a velha parede de casa abandonada, porventura seu último refúgio, ou cais de sua última partida.
A primeira vez que nele reparei foi num desses dias que chamam “de Natal”, época de conforto e abundância para alguns, que não para esta “pobre criatura de Deus”, há muito engrenada em calendário monótono e repetitivo de miséria.
Era um dia Invernal, em início de tarde cinzenta, com chuva miudinha e frio a penetrar até aos ossos.
A cidade mostrava-se com aura fantasmagórica, mas sempre bela como é. Olhei as torres da Sé, meu símbolo preferido do burgo, cicerones cardeais de quem chega e de quem parte, tecto deste ambiente arquitectónico deslumbrante que dá prazer, tranquilidade e gosto de aqui estar.
Dispus-me a sair para observar as velhas cúpulas que ao longe se avistam de qualquer destino. Apontando ao céu lembram foguetões em rampa de lançamento, desde há séculos com partida adiada.
Como este homem que encontrei na passagem de nível, também ele adiado por um futuro que já não lhe pertencerá.
O seu semblante espectral sobressaía da parede onde procurava, certamente, um pouco de conforto perante a intempérie.
A pele castanha escura e enrugada, misto de muitas andanças ao ar livre e sujidade, contrastava com a cor dos farrapos acinzentados que lhe cobriam o corpo.
À sua frente meia dúzia de tábuas tentavam arder, contrariado o lume pelos pingos da chuva persistente.
De vez em quando ajeitava uma lambida e negra panela de barro, cheia de coisa nenhuma, à magra lareira, terminando o movimento num gesticular de espera, dando a ilusão que a comida estava quase no ponto.
E do bolso do tabaco do casaco, que foi esticando com os anos, ia tirando uma garrafa que metia nos lábios ressequidos, para longos goles de um líquido que tresandava a aguardente rasca.
Então os seus olhos, encovados e difíceis de vislumbrar, assomavam à luz do tempo com uma réstia de brilho e de alento.
Detive a marcha…, num acenar chamativo procurei que se aproximasse…, em vão.
Há muito abandonado a si próprio perdera, com certeza, o hábito de ouvir alguém chamá-lo.
Insistindo eu, agora com ruído, assestou em mim um olhar alerta e ar amedrontado de “animal” perseguido. Sem dizer palavra, a mão esquerda moveu-se em linguagem gestual, significativa de que o deixasse em paz.
Mesmo assim, cheguei-me mais perto daquela amálgama humana que expelia um cheiro nauseabundo e indaguei: -ó patrão, vem de onde vossemecê?
Ouvi, em sobressalto, a sua voz gutural, entaramelada pelo efeito dos frequentes goles de bagaço «vai chamar patrão a outro, que eu não sou patrão, nem criado de ninguém, -acentuou- e não venho de lado nenhum, ó meu cegueta…, eu estou aqui, nesta casa que me pertence e onde sempre tenho morado».
Fiquei de momento atrapalhado, mas percebi a agressividade e não desisti do diálogo: -não queria ofendê-lo senhor..., como é o seu nome?
Olhando-me, distante, e enfiando-me uma cuspidela quase em cima dos pés, adiantou: «podes chamar-me Zé, Francisco, Inácio, ou lá o nome que tu queiras, que a mim qualquer nome me serve». Dito isto, pôs novamente o gargalo à boca, para mais uma bagaçada.
-Realmente o nome de uma pessoa não importa muito - argumentei concordante; o que interessa é o que a pessoa é… ou não é…
«Ó pá, estou a ver que me começas a perceber… -ripostou; já agora, como tens cara de bom rapaz, empresta aí duzentos paus para ir encher a garrafa…, é que o chão da casa é húmido e eu preciso de aquecer os pés».
Em lance quase de magia surripiou-me da mão a moeda que tinha tirado do bolso e lá foi, aos solavancos, a caminho da tasca da esquina.
Quando em outro dia passei, surgiu de rompante à porta de batente da taberna e, com o braço direito erguido empunhando a garrafa de aguardente rasca, gritou-me:
«Ó pá, obrigadinho…, vou bebê-la à tua saúde…, se precisares de qualquer coisa aqui me encontras… passagem de nível com guarda, 7000 Évora.
Sinceramente agradeci.
AC

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