Seis tiros à socapa...
(um conto por AC)
(um conto por AC)
O velho Sameiro, apesar da
idade, era um homem alto e bem constituído e sempre o recordo de espingarda a
tiracolo no meio das vinhas à sua guarda. Metia respeito e, confesso, qualquer
tique e modo no seu olhar catapultavam-me para trás das calças ou saias de
pessoa de confiança que estivesse por perto.
De Verão acontecia com frequência ir em
passeio à vinha com a família.
Por vezes ele aparecia sem ser
esperado, subitamente, e a sua “boa tarde patrão” cavernosa – as passeatas
eram, invariavelmente, pela frescura dos fins de tarde – impelia-me a fugir rua
da vinha abaixo, obrigando meu avô a esfalfar-se no meu encalço para conseguir
deter-me antes do portão da propriedade, que já uma vez conseguira ultrapassar,
indo perigosamente para a estrada.
Meditando hoje sobre o assunto, é óbvio
que, então, a sua figura me era sinistra.
Dizia-se que não largava a espingarda
de dia e de noite, dormindo mesmo com os dedos nos gatilhos da arma, ainda com
receio de uma vingança decretada por ter matado um rapaz que fora, pela calada
da noite, roubar uns cachos de uvas num dos sítios da sua jurisdição.
O ti Sameiro sustentou em tribunal ter-lhe parecido ver o
rabo de uma raposa que lhe andava a devastar o galinheiro. E assim convenceu o
juiz, que não o pai do desgraçado atingido por violenta chumbada que lhe
sentenciou uma morte prematura, nunca justificada pelo desvio de uns reles
bagos de uva, que não chegou sequer a saborear.
Esta história fazia muitos
anos mas o velho guarda vinhas tinha como certo que as vinganças, quase sempre,
passam de pais para filhos como um bem precioso da herança e, à cautela, não se
separava do fuzil.
Ouvi uma vez alguém criticá-lo por nos
receber, com despropósito, de arma a jeito: -o perigoso
instrumento ou é para caçar coelhos ou
para estar em casa arrumado e fora do alcance de crianças. Ao que ele
retorquiu, com a sua voz trovejante: -eu, por causa do dia de amanhã que não
sei como virá e estando para aqui sozinho ao Deus dará, prefiro sentir o seu
aconchego. E cá tenho os meus cuidados.
Esta conversa foi prenunciadora de um
episódio que teve lugar ali pelos dias seguintes.
Um fim de tarde de Verão, ainda quente,
fui numa dessas passeatas à vinha com meu avô.
As advertências, como de costume,
sucederam-se em crescendo porque eu ia cinquenta metros à frente do irritado
avô: -pára quieto, olha que cais, cuidado com os carros, ainda te aleijas... e
por aí adiante.
Um lagarto, lagartão para o meu
tamanho, cruzou a estrada, vertiginosamente, passando-me por cima das pontas
dos dedos que assomavam nas sandálias, fazendo-me retroceder, assarapantado e
aos gritos, para a mão segura e protectora que já não larguei. Assim chegámos à
vinha.
Passada a entrada, já esquecido do
susto pregado pelo réptil e contra mais meia dúzia de advertências, larguei em
desenfreada correria na direcção do pequeno pinhal, plantado no termo da vinha,
local muito do meu agrado para observar a passarada que ali tinha o hábito de
pernoitar. No entanto, a meio da alameda que levava ao pinhal fiquei com os pés
colados ao chão pela aparição assustadora do velho Sameiro que se postara à
minha frente, cortando-me o caminho.
Sem saber o que fazer, olhei para trás
a pedir socorro com expressão aflita desenhada no semblante, já que a língua me
ficou presa ao céu-da-boca no único grito que consegui despedir. Três ou quatro
pequenas gotas rolaram-me pelas pernas abaixo no preciso momento em que meu avô
cumprimentava o guarda. Depois acalmei e fui espinoteando à volta dos dois
homens que conversavam com entusiasmo, ignorando a minha presença.
Repentinamente os meus olhos fixaram a
espingarda que já me cativara a atenção de miúdo curioso em outras idas à
vinha.
–Seria ali, naquela espécie de paus com
uma argola à volta, que se dariam os tiros?
A minha mão esquerda voou direita aos
gatilhos e quase em simultâneo soaram dois estampidos, seguidos de grande
algazarra provocada pelos gritos do velho Sameiro e de meu avô que, estatelados
no chão, ainda não sabiam bem o que tinha acontecido.
O mesmo se passando comigo que fui
submetido a alguns “maus tratos físicos”, depois de ter galgado o caminho de
regresso a casa a uma distância bem medida de meu avô, proibido de voltar a pôr
os pés na vinha, assim como de sair de casa nas horas habituais, beber pirolitos
e ter acesso a livros da biblioteca itinerante que nos visitava uma vez por
semana. E tudo isto até nova ordem.
Não voltei a saber do velho guarda até
uma tarde que desejara ir com meu avô naquele passeio que tanto me agradava,
agora anulado pelo severo castigo, e o vi chegar esbaforido a casa,
encerrando-se, de imediato, com minha avó e minha mãe no escritório.
As frestas da velha porta permitiram-me
observar e ouvir o ritmo e gravidade da conversa: -o ti Sameiro tinha aparecido
morto junto à entrada da casa da vinha, de borco sobre um lago de sangue, com
dois tiros no peito, dados pela sua própria arma.
Esta frase terrível, apanhada no meio
de uma conversa com nervos à flor da pele, fez-me dar voltas ao miolo a
imaginar todos os passos de um drama e visionar, num relampejo, o que teria
acontecido nessa noite.
Assim…, já quase madrugada, o velho
Sameiro fora acordado por um resmalhar insistente nas imediações da casa. Por
dedução lógica pensara na raposa manhosa com o velho uso de lhe devastar o
galinheiro, vício que os bichos desta espécie transmitem de geração em geração.
Teria mesmo dito, em surdina, para si:
-a magana há-de pagá-las com dois tiros no lombo.
De trabuco em punho abrira
sorrateiramente a porta de casa e, pé ante pé, fizera menção de se dirigir ao
galinheiro, onde lhe parecera ver o rabo da raposa em plena orgia alimentar.
Mas nesse instante sentira-se preso
pelo pescoço e pelo ventre, com tal força que não conseguia mexer-se. Depois, à
sua frente, vira um vulto maior que o seu, que lhe imobilizara as mãos ao mesmo
tempo que lhe arrancava a espingarda com violência.
José Sameiro ainda ouvira os estampidos
dos dois tiros que lhe atingiam o peito.
A velha vingança fora cumprida.
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