Thursday, November 27, 2025

A matança

 

 

 


 

«Vamos a eles patrão Manuel…, vamos a eles que já estão a adivinhar para que é a banca».
António acabara de afiar as facas e o facalhão com que traçaria o destino dos porcos, em direcção ao seu mundo peculiar na salgadeira ou no fumeiro da casa.
Os condenados estavam mal encarados e de mau humor, pois tinham pressentido, de véspera, o arrumar da banca e das cordas, da balança e dos ganchos de pendura, dos utensílios de corte e de desmancho, dos alguidares, enfim…, até do horrível tijolo vermelho que lhes seria metido nos interiores do focinho, anulando uma mais que certa defesa do bácoro e abafando os seus últimos grunhidos de desespero.
«Primeiro este que já se pôs a jeito da banca», sentenciou o patrão.
O porco assustado por ver tanta gente à sua volta, com focinho de poucos amigos, tinha-se posto em guarda junto à mesa do sacrifício.
“Pensou o pobre porco:  –o primeiro que se adiantar leva com as burras numa perna…, que lha furo de  lado a lado”.
Como é sabido, a luta entre homens e porcos sempre foi desigual, com vantagem para os primeiros: uma questão de cérebro, de membros superiores e de patas. Se bem que, nos interiores homens e porcos são tão semelhantes que daí nasceu o aforismo popular «se queres ver o teu corpo abre um porco».
E da curiosidade humana pelos porcos aconteceu o inevitável gosto por comê-los, tudo o “malvado” ser humano degustou nos porcos…, até os ossos!
Mais célere que o “pensamento” do porco, o António já lhe tinha laçado o pescoço, depois as patas dianteiras, o que o fez tombar, e de seguida as traseiras…, tudo tão rápido que o desgraçado porco foi içado para cima da banca, fria como uma tumba, quase sem dar por isso.
Vendo-se manietado naquele cadafalso tenebroso, deu umas grunhidelas valentes e uns safanões corajosos, na tentativa de se libertar. O tijolo vermelho, com sabor ácido e amargo, foi-lhe metido pela boca adentro, até às goelas, e depois bem atado e apertado o focinho, sua última arma defensiva, prontamente posta fora de combate.
Um dos homens aproximou-se do porco com o enorme facalhão, na direção da barbela. É o carrasco, disso tem a certeza o infeliz suíno. E sabe que, num tudo ou nada, o céu deixará de ser azul para se pintar de escuro negro como o breu.
O outro porco, vendo a tragédia à sua frente, quis pôr-se a milhas, mas seguiu o mesmo caminho: chouriços, linguiças, toucinho, presuntos…, mesmo as orelhas se comem como grande petisco.
É o destino dos porcos, de há milénios… por estas bandas.

 

AC

Monday, November 03, 2025

Anta da Vidigueira, Freixo - Redondo


 

Cultura Megalítica ou Megalitismo

 

Fenómeno cultural caracterizado pela construção de grandes monumentos de pedra, cuja origem remonta, especialmente, ao período pré-histórico Neolítico, cerca de seis a cinco milénios a.c. . Embora difundida por todo o mundo, desenvolveu-se sobretudo no mediterrânio ocidental e europa atlântica, tendo a sua maior expressão nos monumentos de sepultamento.

Acontecimento do quarto milénio a.c.

Um grupo de caça desce do povoado, localizado na aba sul da serrania, em marcha apressada, procurando fazer o menor ruído possível para surpreender uma grande manada de auroques que tinha chegado às ricas pastagens das planícies que se estendiam até onde um olho certeiro podia enxergar. Caçar alguns destes animais alimentaria a tribo por alguns meses.

Os adultos eram seguidos por alguns jovens já em idade de aprender as manhas e truques da caça a animais de maior porte, e mais perigosos quando acossados pela algazarra final da perseguição. Embora fizesse frio, o que os cobria não atrapalhava o movimento; iam bem armados: machados de pedra de gume cortante, lanças leves com bem trabalhadas pontas de sílex e outros artefactos para esquartejar as feras abatidas.

Um auroque que pastava tranquilamente, desgarrado da manada, foi surpreendido e surpreendeu o grupo; investiu selvaticamente sobre dois jovens que caminhavam em terreno mais aberto; uma cornada, aplicada com toda a força e peso do bicho, levantou os rapazes que caíram com estrondo alguns metros à frente…, depois marrou e pisou desenfreadamente até o grupo conseguir vergá-lo com vários golpes das suas lanças.

Os corpos foram deixados para trás, cobertos por pedras que impediam o avanço de algum lobo que farejasse o local. Posteriormente, quem se podia deslocar percorreu o longo caminho desde a serrania até aos dois amontoados que cobriam os entes queridos; ali ergueram um digno monumento de pedra onde colocaram os dois corpos: ao som de canções e choros, cada um foi deixando pequenos potes com comida, flores silvestres…, colares e enfeites…, para a viagem no além.

AC

Anta da Vidigueira, Freixo - Redondo

 




Sunday, April 03, 2022


 

 

Numa noite (supostamente) de Natal...

 

 

Uma menina e uma velha vagueiam na estrada que se transformou num mar de lama, entre colunas de soldados de aspeto medonho, carros de combate fumegando e rugindo ameaçadoramente e um frio agreste que se instalou por todo o lado, muito antes da chegada do Inverno.

Martina, como se chama a pequena, não deve ter mais de seis anos e já transporta a beleza das mulheres da região – cabelos de ouro, olhos azuis, nariz e boca com traço perfeito. Entre o braço esquerdo e o peito sustem com jeito e carinho maternais uma boneca, brinquedo que conseguiu retirar são e salvo da casa da família totalmente arrasada pelo fogo da artilharia pesada. E no que foi o seu quarto de dormir recuperou também, quase intacto, um carrinho de madeira que servia para brincadeiras ao ar livre com as amigas e onde transporta agora alguma roupa que as chamas não consumiram.

Martina viu os corpos dos pais e dos irmãos despedaçados entre os escombros mas não deitou uma lágrima, não disse uma palavra, nem emitiu um sinal de desespero perante o cenário dantesco a que viu reduzida a família.

A velha tem o peso dos anos marcado no corpo. Foi bonita? Com certeza, as mulheres aqui são todas bonitas quando novas. Depois criam barriga, quer tenham filhos, quer não, engordam e por fim mirram, como árvores sem seiva aparecem cheias de rugas.

Maria Borosov – é o nome da mulher – há muitos anos que se arrasta só, entre privações de toda a ordem e guerras.

 Poderia ser avó de Martina mas não é. São apenas companheiras no mesmo caminho que não tem outro destino que não seja fugir da zona de combate. Encontram-se num fim de tarde quando procuram abrigo da intempérie e da bandidagem, na ruína de uma casa esventrada.

A velha Maria Borosov angariara um pão e alguma fruta que reparte com Martina. Depois anicham-se uma na outra para melhor resistirem ao frio.

Ao longe ouvem-se os rebentamentos – mesmo de noite as armas não se calam «porque o trabalho tem que ser muito produtivo».

-De onde vens tu, pequena? – pergunta a velha.

Martina encolhe os ombros, em gesto significativo, e aponta em direcção a sul. Esbatidos no céu, avistam-se os contornos dos montes para lá dos quais fica a sua cidade ou o que resta dela – um amontoado de ruínas fantasmagóricas.

-Também vens da montanha, como eu, a fugir da guerra que ainda nos mata a todos!  –E como te chamas tu? – insiste a velha.

Martina volta a encolher os ombros, pois não fala desde o dia em que viu a casa e a família desfeitas. Mas desta vez duas lágrimas rolam pela face da menina que recorda os dias felizes que passou do outro lado da montanha, da qual se afasta cada vez mais. E tenta perceber porque apareceram tantos soldados e homens armados que em menos de dois dias transformaram em cacos a sua cidade. Com estes pensamentos terríveis para uma criança da sua idade, Martina aconchega-se melhor no corpo da mulher e deixa-se dormir.

Maria Borosov sente o calor daquele corpo franzino que lhe dá algum conforto. Olha o céu em agradecimento pela dádiva daquela companhia.

A abóbada celeste está estrelada como nunca e por cima da casa destelhada, que lhes serve de refúgio, distingue uma estrela por ser a mais brilhante no firmamento.

Apesar do ribombar longínquo e contínuo dos canhões, imediatamente pensa para si: -hoje deve ser noite de Natal – se não é poderia ser – e aquela estrela ali por cima... ...talvez queira indicar que aqui se encontra o Menino. Mas desta vez engana-se... ...porque afinal é uma Menina! 

É o último pensamento da velha Maria Borosov. Um tiro, sabe-se lá vindo de onde, transforma em pó o «refúgio» em que a menina e a velha passam a noite (supostamente de Natal).

 conto de Luís Galhardas

ilustração de Paula Costa




Sunday, June 14, 2020

Consultório do Dr. Jorge




 


No consultório.com…

Chegou o frio..., ainda não muito intenso mas a provocar já uma onda de “resfriados” nos marados que fazem do desagasalho uma certidão de fortaleza. Gozo interiormente ao vê-los transpor a porta do consultório fungando a sua maleita.
«Não sei como arranjei isto doutor... eu nunca me “gripo” pois tenho uma saúde de ferro... atxim, atxim, atxim...».
–ÓÓÓ… por favor..., não espirre para cima de mim... e ponha a mão com um lenço a tapar o nariz e a boca… espirre para o lado... você em cada espirradela que dá expele 1 milhão de vírus para a atmosfera…, neste caso para cima de mim.
Sou ansiosamente interrompido: «será a gripe do conona vírus... doutor?...»
–Conona a sua tia…, não não é..., a gripe fugiu para o Pólo Norte com medo do Dr. Jorge… os vírus também têm medo, sabia(?)..., de tipos como o Dr. Jorge que vivem na caverna da doença (vulgo hospital).
«Por acaso não sabia... nem sei quem é o Dr. Jorge…, que mete medo aos vírus... deve ser um tipo bestial... se soubesse tinha ido ter com ele antes de me ter “gripado”... atxim, atxim, atxim…
–Nããooo... não…, …espirre para um lenço de papel… como lhe disse…, ou para a prega do cotovelo…, lá me espetou você com uma tonelada de vírus em cima… outra vez!
«Uma tonelada de vírus???
 –Modo meu de falar... são muitos... os vírus!
«Então doutor... se não é a gripe do conona é gripe da normal... e esta despacha-se facilmente, não é?...».
–Não há uma gripe dita normal…, só na cabeça de alguns idiot…, …e isso de se curar facilmente – o “despachar” é um termo bastante inapropriado…, e logo no caso dos vírus… upa upa…, depende do seu estado de saúde anterior… se tem doenças crónicas… diabetes…, asma…, artrite… e mais umas quantas mazelas que apoquentam o ser humano quando muito bem calha…, ou melhor, quando está determinado; homem você sabe o que é o determinismo científico… … nunca ouviu falar das causas e dos efeitos das coisas?...
«Nada disso… no que diz respeito a males crónicos sou perfeitamente saudável!... e determinado a sê-lo».
–Como sabe você que é perfeitamente saudável(?)… e morre tanta gente perfeitamente saudável!...
«O doutor está a assustar-me…».
 –Eu estou a assustá-lo?… impressão sua… argumento apenas a sua afirmação «como pode alguém dizer que está perfeitamente saudável», quando o Dr. Jorge da sua caverna nos envia Super Bactérias e Vírus, avidamente desejosos de nos afincarem o dente…; quando muito você pode dizer que os seus pratos da balança saúde-doença se vão equilibrando…, por agora.
«Mas afinal esse tal Dr. Jorge… que afasta… ou lança calamidades… existe mesmo essa caverna do Dr. Jorge?».
–Ó meu caro… tão certo como dois mais dois serem quatro… ou eu não me chame Jorge.
«???!!!...!!!???»
AC