Numa noite (supostamente)
de Natal...
Uma menina e uma velha vagueiam na estrada que se transformou
num mar de lama, entre colunas de soldados de aspeto medonho, carros de combate
fumegando e rugindo ameaçadoramente e um frio agreste que se instalou por todo
o lado, muito antes da chegada do Inverno.
Martina, como se chama a pequena, não deve ter mais de seis
anos e já transporta a beleza das mulheres da região – cabelos de ouro, olhos
azuis, nariz e boca com traço perfeito. Entre o braço esquerdo e o peito sustem
com jeito e carinho maternais uma boneca, brinquedo que conseguiu retirar são e
salvo da casa da família totalmente arrasada pelo fogo da artilharia pesada. E
no que foi o seu quarto de dormir recuperou também, quase intacto, um carrinho de
madeira que servia para brincadeiras ao ar livre com as amigas e onde
transporta agora alguma roupa que as chamas não consumiram.
Martina viu os corpos dos pais e dos irmãos despedaçados entre
os escombros mas não deitou uma lágrima, não disse uma palavra, nem emitiu um
sinal de desespero perante o cenário dantesco a que viu reduzida a família.
A velha tem o peso dos anos marcado no corpo. Foi bonita? Com
certeza, as mulheres aqui são todas bonitas quando novas. Depois criam barriga,
quer tenham filhos, quer não, engordam e por fim mirram, como árvores sem seiva
aparecem cheias de rugas.
Maria Borosov – é o nome da mulher – há muitos anos que se
arrasta só, entre privações de toda a ordem e guerras.
Poderia ser avó de
Martina mas não é. São apenas companheiras no mesmo caminho que não tem outro
destino que não seja fugir da zona de combate. Encontram-se num fim de tarde
quando procuram abrigo da intempérie e da bandidagem, na ruína de uma casa
esventrada.
A velha Maria Borosov angariara um pão e alguma fruta que
reparte com Martina. Depois anicham-se uma na outra para melhor resistirem ao
frio.
Ao longe ouvem-se os rebentamentos – mesmo de noite as armas
não se calam «porque o trabalho tem que ser muito produtivo».
-De onde vens tu, pequena? – pergunta a velha.
Martina encolhe os ombros, em gesto significativo, e aponta em
direcção a sul. Esbatidos no céu, avistam-se os contornos dos montes para lá
dos quais fica a sua cidade ou o que resta dela – um amontoado de ruínas
fantasmagóricas.
-Também vens da montanha, como eu, a fugir da guerra que ainda
nos mata a todos! –E como te chamas tu?
– insiste a velha.
Martina volta a encolher os ombros, pois não fala desde o dia
em que viu a casa e a família desfeitas. Mas desta vez duas lágrimas rolam pela
face da menina que recorda os dias felizes que passou do outro lado da
montanha, da qual se afasta cada vez mais. E tenta perceber porque apareceram
tantos soldados e homens armados que em menos de dois dias transformaram em
cacos a sua cidade. Com estes pensamentos terríveis para uma criança da sua
idade, Martina aconchega-se melhor no corpo da mulher e deixa-se dormir.
Maria Borosov sente o calor daquele corpo franzino que lhe dá
algum conforto. Olha o céu em agradecimento pela dádiva daquela companhia.
A abóbada celeste está estrelada como nunca e por cima da casa destelhada, que lhes serve de refúgio, distingue uma estrela por ser a mais brilhante no firmamento.
Apesar do ribombar longínquo e contínuo dos canhões, imediatamente pensa para si: -hoje deve ser noite de Natal – se não é poderia ser – e aquela estrela ali por cima... ...talvez queira indicar que aqui se encontra o Menino. Mas desta vez engana-se... ...porque afinal é uma Menina!
É o último pensamento da velha Maria Borosov. Um tiro, sabe-se lá vindo de onde, transforma em pó o «refúgio» em que a menina e a velha passam a noite (supostamente de Natal).
conto de Luís Galhardas
ilustração de Paula Costa