A estação da Felicidade...
Na velha estação há muito que não passa um comboio.
A azáfama dos passageiros que vão e que vêm, as últimas recomendações dos que ficam aos que partem, uma menina de franjinha, com lágrima no canto do olho, assoma a uma janela embaciada de onde vê, pela última vez, o avô, um vendedor ambulante procura despachar os últimos bolos, o homem corpulento de bigodes retorcidos e boné branco dá o sinal de partida com a corneta sibilante, um último passageiro surge em desalmada correria na gare, suando em bica com o peso da bagagem...
Nenhum dos frequentadores da velha estação tem memória de um cenário assim.
O edifício tem sido carcomido por muitos anos de abandono – janelas e portas estão definitivamente escancaradas a toda a espécie de bicharada – o nome do local, por cima da porta da gare central, ainda conserva uma letra bem composta e a erva daninha esburacou pavimentos e paredes, a seu belo prazer, fazendo das salas de espera um autentico matagal.
Ouve-se o vento que sopra frio entre postigos e não tem tempo de parar ali...
Nas traseiras do casario decadente uma pequena casa contrasta com o amontoado de ruínas e lixo – as paredes mostram a alvura que lhes é própria, fazendo evidenciar a toda a volta um rodapé azul forte e as madeiras exteriores, pintadas de cinzento, apresentam um estado de conservação impecável. Até o telhado tem aspecto de arranjo recente.
É o bar da Felicidade. Confunde-se o nome do estabelecimento, com o da respectiva patroa que atrás do balcão atende os fregueses de copo de cerveja em punho.
Quando se fixa a figura de Felicidade dois pormenores sobressaem: –os olhos, com sobrancelhas postiças que lhe dão um semblante sempre franzido, denunciam a qualquer hora do dia ou da noite uma boa dose de álcool já ingerido; –e os lábios, que ressaltam à distância devido ao batôn vermelho berrante aplicado em sucessivas camadas.
O resto do seu conjunto também tem um aspecto confrangedor, a começar pelo cabelo que mais parece uma pasta de tinta arruivada, em completo desalinho, e onde até mais de metade do comprimento se vê a cor original branca; depois a multidão de rugas semeadas por todo o rosto, as roupas de cores chocantes com nódoas que se vão sobrepondo umas às outras e, para cúmulo, esta mulher de mais de sessenta e cinco anos usa uma mini saia descarada que lhe põe à mostra umas pernas ressequidas, cheias de pêlos. E ainda ouro, muito ouro, entre anéis, pulseiras, correntes, pregadores, brincos e até um relicário, meio enfiado entre os seios avantajados, contendo a fotografia muito sumida do marido falecido há trinta anos.
Acácio vendia guloseimas e bebidas frescas nos comboios que nesse tempo andavam cheios de magalas e de passageiros anónimos que iam e que vinham à procura de vida. Felicidade também corria de comboio em comboio, sempre naquele que transportava mais soldados – ela atrás deles para se governar e eles no seu encalço para descomprimir as horas de tédio passadas semanas a fio no quartel.
Foi num desses comboios que Acácio e Felicidade se conheceram, se amaram, se entregaram definitivamente um ao outro e, de comum acordo, resolveram que era tempo de se apearem na próxima estação, fosse ela qual fosse.
Em princípio de vida montaram o bar na movimentada estação de S. Romão, um entrecruzamento ferroviário da importante linha do Sul com a de Este.
O negócio das sandes e das bifanas foi de vento em poupa. Acácio prosperou rapidamente e teria ido longe, não fosse trucidado pelo Sudexpress devido ao hábito e excesso de confiança em transpor a via férrea de um lado para o outro, naquele dia fatídico à hora de passar o Sud que não fazia escala em S. Romão. Este acidente impensável sufocou a vida arejada de Felicidade que acreditava, com fé inabalável, ter desencantado numa carruagem do Sudexpress o homem que mesmo em sonhos é difícil existir. Fora ele que, conhecendo a faceta desagradável da sua vida, pegara nela ao colo no dia do casamento, com toda a ternura que tinha dentro de si e jamais deixara de a apaparicar com a satisfação das mais pequenas vontades que lhe adivinhava.
Naquela tarde fria mas com uma luminosidade fora do habitual, Felicidade assistiu ao espectáculo macabro da recolha dos destroços do marido para o caixão depositado na gare central e pensou que no mesmo esquife seria sepultada a sua alma, precocemente arrancada do corpo por desgosto tão grande. Jurou que não voltaria a casar-se, em memória de Acácio que naqueles breves anos em comum dera à sua vida o pleno sentido do nome que ela usava desde a pia baptismal.
Os fregueses do bar da velha estação, que pululam à sua volta como abelhas em torno do mel, desconhecem as alegrias e tristezas da vida de Felicidade. Mas das misérias da velha “empresária”, consumida pelo tempo, estão a par delas como se de segredos das suas vidas se tratassem.
Alguns ainda se recordam vagamente da passagem dos comboios, do grande corrupio de gentes e da primitiva função do antro que agora frequentam assiduamente.
Os comboios foram-se atrasando e o tempo trouxe desemprego e outras calamidades. Finalmente deixaram de passar.
Mas é sabido que não foi por isso que Felicidade entregou o corpo ao álcool...
AC